Entrevista com Haino Burmester e Laura Schiesari
Reprodução da Revista do CREMESP Edição 57 – Outubro/Novembro/Dezembro de 2011
Um número cada vez maior de hospitais brasileiros tem se submetido a processos de avaliação externa, com o objetivo de melhorar a qualidade e a segurança do atendimento a seus pacientes. No Brasil, o modelo mais utilizado é o da acreditação. Ela realmente melhora a qualidade da gestão hospitalar? Proporciona mais segurança? Pode ter interesses comerciais ou deve ser voluntária? Como repercute no trabalho médico? Os usuários percebem as melhorias? Para responder estas e outras questões, a Ser Médico promoveu um debate, reunindo o coordenador do programa Compromisso com a Qualidade Hospitalar (CQH), Haino Burmester, e a gerente de Unidades Externas do Hospital Sírio Libanês e autora de dissertação de mestrado e tese de doutorado sobre acreditação hospitalar, Laura Schiesari. A mediação ficou a cargo do conselheiro do Cremesp e gestor de hospitais, Nacime Salomão Mansur.
Nacime: Como os senhores veem a acreditação hospitalar? É um movimento inexorável rumo a uma metodologia de gestão para melhorar a qualidade da assistência à saúde?
Laura: Acreditação, sucintamente, é um modelo de avaliação externa da qualidade. É abrir nossas instituições para que especialistas na área da saúde as observem a partir de critérios pré-definidos. Fenômeno do século passado nos países de língua inglesa, chegou ao Brasil, depois de décadas, nos anos 90. Desde então, vários grupos se formaram e, atualmente, temos – coisa única no mundo – a coexistência de vários modelos: o da Organização Nacional de Acreditação (ONA); o da Joint Commission que, no Brasil, é representado pelo Consórcio Brasileiro de Acreditação (CBA); a Accreditation Canada, designada pelo Instituto Qualisa de Gestão; e, mais recentemente, o DNV (Det Norske Veritas). O CQH é um modelo de avaliação externa que não tem o título de acreditação, segundo me informou Haino. Temos em torno de 185 hospitais acreditados, boa parte deles concentrada na região Sudeste e, em segundo lugar, no Sul. A ONA tem aproximadamente 148 hospitais acreditados, a Joint via CBA tem 23, os canadenses via Qualisa, 12; e a DNV, 2. É pouco em um país com tantas instituições de saúde, mas quando comecei a escrever meu mestrado, em 1998, ninguém sabia muito bem o que era isso. A evolução, então, é fantástica. É um movimento inexorável? Em todo o mundo existe a necessidade, por uma questão de transparência e gestão, entre outras, de se fazer avaliação externa. Se é um movimento inexorável ou não, não sei. O fato é que, no Brasil, esse é o mais forte.
Nacime: Dr. Haino, qual sua opinião sobre essa evolução? É um movimento que faz avançar a gestão?
Haino: Estou um pouco cético em relação à contribuição da acreditação, tanto no Brasil quanto no mundo. Mesmo nos Estados Unidos, onde existe desde a década de 50, ela está em discussão devido a dois ou três aspectos. O primeiro é quem financia e, em segundo, quem realiza a avaliação. Aí começam a entrar interesses que, às vezes, são questionáveis. Houve, recentemente, um grande escândalo nos EUA relacionado a uma empresa de acreditação. Lá, esse modelo perdeu parte da representatividade e do vínculo com a qualidade como nós a entendemos aqui. Os EUA não têm um órgão estatal que conceda alvará para as instituições privadas, então a Joint Commission faz esse papel. Além disso, o financiamento do setor provoca muitas dúvidas. Aqui no Brasil também há tendências conflitantes. Outro problema é a metodologia, que tem um peso muito passageiro. No CQH temos, ultimamente, trabalhado no sentido de estimular as organizações a desenvolver modelos de gestão com durabilidade, que perpassem até mesmo as possíveis mudanças de gestores. Consequentemente, a qualidade virá, não por imposição externa ou pressão do mercado, mas porque tem de vir. Na saúde, a qualidade deve ser algo inerente ao prestador de serviço. Não sei se esses organismos e ferramentas de acreditação proporcionam isso. Para a Associação Médica Mundial, essa atividade nunca deveria ser mediada por interesses comerciais. Não se pode vincular a avaliação à remuneração. Ela deveria ser feita por voluntários ou organizações voluntárias que não estejam comprometidas com as questões hospitalares. Por isso, gosto do nosso modelo do CQH. Acho que é exemplar. O fato de duas instituições médicas do Estado – Cremesp e Associação Paulista de Medicina (APM) – serem suas mantenedoras, proporciona a realização de um trabalho livre de pressões ou de injunções das partes envolvidas.
Nacime: Em relação à qualidade ser inerente à prática da assistência de saúde, gostaria de acrescentar que ela é também a única forma de diminuir o custo em saúde. A metodologia de acreditação é uma ferramenta de gestão para a busca dessa qualidade?
Laura: Não tenho dúvida de que ajuda. Trabalhei em diversos hospitais acreditados e não-acreditados, dentro e fora do Brasil. Os primeiros são muito diferentes. Neles, as pessoas acabam incorporando o ritual da autoavaliação e da avaliação externa. O modelo de acreditação “dá um norte” para todos os seus colaboradores. Outra metodologia de avaliação externa são os prêmios de qualidade. Quando a intenção é boa, qualquer modelo pode ser bem aplicado. Mas houve uma distorção por parte de alguns hospitais na busca da acreditação, talvez em decorrência da popularização dessa metodologia em nosso meio. Cada instituição acreditadora constitui um grupo de interesse diferente. É importante que tenhamos alguém para regular esse mercado. Externamente, temos a Internacional Society for Quality in Health Care (ISQua), que possui um modelo de avaliação do avaliador. Está faltando isso para nós. As empresas internacionais existentes no Brasil são acreditadas por este acreditador fora do país.
Nacime: Temos cerca de 7 mil hospitais no Brasil, e estamos falando de uma melhoria de 200 a 250 que já passaram por alguma experiência de avaliação externa. Essa metodologia contribui no sentido de termos, pelo menos, parâmetros mínimos de qualidade na perspectiva cidadã do usuário ou do financiador, do governo ou da medicina suplementar?
Haino: Qualquer esforço é válido. O questionamento que deve ser feito é se, mal direcionado, não tira o foco das questões substantivas. De repente, começa-se a pensar nisso como se fosse uma panaceia e, daqui algum tempo, pode-se concluir o mesmo que os EUA. É um caminho que nos desvia da essência que, no fundo, é a gestão. Os gestores precisam assumir seu papel e entender que isso é uma técnica. Existem grandes organizações brasileiras ou internacionais muito boas, que não são da área da saúde – algumas delas centenárias –, que não adotaram um programa de acreditação. Elas estão nessa posição porque desenvolveram a própria gestão e implementaram uma cultura organizacional que vem se mantendo ao longo do tempo.
Nacime: As metodologias, como a canadense, particularmente, focam muito a segurança. Houve uma melhoria significativa nesse quesito após a acreditação? Por exemplo, o checklist cirúrgico é capaz de modificar comportamentos, introduzindo uma cultura de segurança?
Laura: Infelizmente não temos como comparar o antes e o depois dos hospitais acreditados. Para quem passa por um processo de acreditação, fica a sensação de que aconteceu muita coisa, mas é difícil medir isso. Em relação à segurança do paciente, o esforço da Organização Mundial de Saúde (OMS) e das metas internacionais é enorme. Devido a elas, está havendo uma mudança nos hospitais nas questões de identificação dos pacientes. Ninguém falava abertamente sobre cirurgia de amputação de perna do lado errado, e isso acontece nas melhores instituições – além de falha na identificação do paciente, problemas na lavagem das mãos etc. Houve uma aceitação de que esses fatores representam grande desafio, embora sejam questões básicas. Mas concordo com o Haino, o fato de um hospital ser acreditado não significa que tem qualidade ou não. Se ele fez um bom processo nesse sentido, a qualidade pode estar melhor. Há casos em que o empenho do hospital foi pequeno, mas felizmente são minoria. Não sei se a segurança está melhor do que antes, mas no pós-acreditação ela está melhorando. Alguns hospitais, sem projetos de qualidade, estão começando pelas metas internacionais porque são preconizadas pela OMS. Em algumas realidades, elas são incorporadas mais facilmente nas rotinas hospitalares, o que já é um bom começo.
Nacime: O movimento de acreditação existe apenas no setor privado, ainda não foi incorporado pelo aparelho estatal. O Ministério da Saúde participou no início e se retirou. Como se comportaria o Estado nessa questão? Há necessidade de uma legislação que obrigue ou induza os hospitais públicos e privados a passarem por um processo de avaliação externa para mudar alguns patamares de qualidade e práticas dentro do sistema?
Haino: Aqui no Brasil, o Estado participa dessa questão por meio da concessão de alvarás. Ele tem o poder de polícia, de autorizar ou não o funcionamento de instituições públicas ou privadas. É um poder importante e insubstituível. É função do Estado fazer isso, mas não é suficiente. É preciso algo mais, talvez por meio de uma legislação complementar. Quanto à qualidade, é importante que ela seja voluntária, insisto muito nisso. E não é só o avaliador ser voluntário, é a participação voluntária.Você tem de querer fazer as coisas de forma diferente e não porque a lei ou o mercado exigem.
Laura: Concordo com o Haino de que seria interessante se continuasse sendo um processo voluntário, mas com estímulos para criar um ambiente favorável à busca de melhorias. Já existem alguns indícios nesse sentido. Os contratos de gestão têm colocado que determinadas organizações devem passar por um processo de acreditação, ou que elas têm de publicar, enviar ou atingir indicadores da qualidade. Não é uma imposição, mas é quase isso. A Associação Nacional de Hospitais Privados estimula a acreditação. O meu receio é: toda regra que se cria provoca o desvio da regra. E é isso que está acontecendo na Europa. Existem casos gritantes de maquiagem pré-acreditação de hospitais na França, não é só aqui. Ouvimos falar também de hospitais nos EUA que transferem pacientes às vésperas da acreditação para evitar algumas situações difíceis. Quero crer que seja uma minoria. Se for obrigatório, teremos uma série de casos de desvio, mas, enquanto for um processo voluntário, pode haver maior comprometimento por parte das lideranças das instituições.
Nacime: Defendo o trabalho voluntário, não a imposição via legislação. Ressalvando certo conflito, uma vez que sou responsável pela gestão de alguns hospitais e adepto da acreditação, posso dizer que em nossos estabelecimentos acreditados – dois deles possuem esse título em nível internacional – há uma evidente melhora, embora seja difícil dimensioná-la. Pelo menos, existe um caminho a seguir. Mas o sistema começa a ser distorcido se colocarmos isso junto a alguns estímulos, como ganhar e pagar mais. Nesse sentido, dr. Haino, como fica se você não possui essas ferramentas? E como vocês veem o papel dos usuários e dos trabalhadores em saúde nessa questão?
Haino: Li um artigo recentemente dizendo que o impacto da acreditação nos EUA não teve repercussão para o usuário. É uma questão meio indiferente para ele, talvez por essa característica local de não haver o alvará. Então, tinha impacto mais na liderança do que no usuário. Aqui no Brasil, não vi impacto nem para o usuário nem para o trabalhador. Quanto à necessidade da ferramenta, não há dúvida de que ela tem conteúdos administrativos, não sei se apresentados da melhor forma, mas tem. O problema, segundo minha experiência, é o do preparo. Isso está claro em nossa cultura. Um mínimo de preparo sempre haverá, porque até em sua casa, se você vai receber uma visita, espera-se que ofereça respeito ao visitador. Então, alguma maquiagem vai acontecer, mas o que temos visto aqui vai além disso. E vi isso também nos EUA. No final do processo de acreditação tem aquela sensação de alívio e de “só daqui dois anos nos preocuparemos de novo com isso”.
Nacime: O CQH e o Prêmio Nacional não carregam também essa possibilidade?
Haino: Não considero mais o CQH como acreditação. Nós continuamos mantendo as visitas por tradição, mas ele é um veículo disseminador da cultura organizacional globalizada, de um modelo de gestão. Quanto ao prêmio, ele pressupõe menos preparo porque é concedido em cima de um relatório de gestão, baseado no que a organização vem fazendo ao longo do tempo. A visita é menos importante nesse caso. Mas, da mesma forma que a acreditação, o fulano pode ser um ótimo preparador de relatórios. Esse é o ônus dessas metodologias.
Laura: O usuário demora a perceber o impacto dessas iniciativas da qualidade. Mas ele tem uma série de coisas em um hospital acreditado que não tem em um não-acreditado, como a permanente checagem de nomes, as pulseiras de identificação etc. A avaliação da satisfação do paciente pode existir em qualquer lugar, mas muitos programas de acreditação querem que se faça alguma coisa com o que foi encontrado nessas pesquisas. Para o trabalhador existe uma grande motivação durante o período da primeira acreditação. Os problemas são os seguintes. As pessoas pensam: “e agora”? A dificuldade maior não é ser acreditado, é manter níveis crescentes de qualidade ou as aquisições ao longo desse processo. Precisamos evoluir nesse conceito de acreditação para algo que seja mais lúdico e vivo. É verdade que em alguns hospitais se tornou um mecanismo de opressão, mas, insisto, isso é exceção e não regra.
Nacime: Como o médico se comporta nesse processo? O que muda na prática médica?
Haino: O envolvimento do médico é fundamental, mas, infelizmente, tem sido pequeno. O médico, de modo geral, é pouco afeito às questões institucionais. As iniciativas passam à margem dele. Esse é um desafio para nós, Conselho de Medicina, APM e todas as entidades médicas. É preciso encontrar uma forma de vinculá-lo à instituição.
Laura: Um dos grandes desafios é o envolvimento do médico nesses processos da qualidade e na gestão em geral. Acho que precisamos envolvê-lo, desde o início, nos assuntos cruciais, como o prontuário, os cuidados, a equipe multiprofissional… Temos de mostrar a ele que esse processo aumenta a segurança para o exercício da profissão.