Rev. Adm. Saúde (On-line), São Paulo, v. 23, n. 92: e351, jul. – set. 2023, Epub 30 set. 2023
http://dx.doi.org/10.23973/ras.92.351
ARTIGO ORIGINAL
Planos de Saúde para os anos de 2022 a 2025: o caso dos municípios baianos
Health Plans for the years 2022 to 2025: the case of municipalities in Bahia
Desirée dos Santos Carvalho1, Mirella Dias Almeida2, Francisco Borges Rodrigues Neto3, Larissa de Faro Valverde4, Marcele Santana de Freitas5, Sara Emanuela de Carvalho Mota6
1. Enfermeira, mestre em saúde coletiva. Enfermeira da Superintendência Estadual do Ministério da Saúde na Bahia
2. Nutricionista, especialista em saúde coletiva. Nutricionista da Superintendência Estadual do Ministério da Saúde na Bahia
3. Farmacêutico, especialista em saúde coletiva. Farmacêutico da Superintendência Estadual do Ministério da Saúde na Bahia
4. Odontóloga, mestre em saúde coletiva. Odontóloga da Superintendência Estadual do Ministério da Saúde na Bahia
5. Psicóloga, especialista em psicologia conjugal e familiar. Psicóloga da Superintendência Estadual do Ministério da Saúde na Bahia
6. Doutora em saúde pública. Servidora da Superintendência Estadual do Ministério da Saúde na Bahia
RESUMO
O planejamento no Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos mecanismos para assegurar a unicidade e os princípios constitucionais do sistema. O Plano de Saúde é o instrumento central de planejamento para definição e implementação de todas as iniciativas do SUS. Para analisar os Planos Municipais de Saúde (PMS) elaborados para o período de 2022 a 2025, de acordo com as recomendações para o planejamento no SUS, foram investigados os municípios baianos, a partir dos documentos disponibilizados no Sistema DigiSUS Gestor - Módulo Planejamento. Analisou-se 125 municípios, amostra aleatória e representativa dos PMS aprovados pelos respectivos Conselhos Municipais de Saúde (CMS), estratificada por macrorregiões de saúde. Observou-se quatro dimensões: características do município; participação social e transparência; normativa; e consistência. Os resultados demonstraram que a maioria dos municípios são rurais (71%) e tem população de até 50 mil habitantes (91%). Alguns documentos anexados ao sistema não correspondiam ao PMS ou às resoluções dos CMS e 15% dos planos analisados não mencionaram a participação social na elaboração. Apenas 2% apresentaram análise de situação de saúde contendo todos os temas recomendados, sendo mais frequentes as descrições de condições sociossanitárias (97%) e de estrutura do sistema de saúde (81%). A maioria (94-97%) continha diretrizes, objetivos, metas e indicadores (DOMI), mas observou-se, para alguns municípios, inconsistências das DOMI descritas no documento do PMS anexado, comparadas às digitadas no sistema. Somente 53% apresentaram o processo de monitoramento e avaliação. A maioria dos PMS fez referência a algum dos instrumentos de planejamento e orçamento governamental (74%) e à regionalização em saúde (55%). Este estudo sugere a premência de qualificação dos PMS, para ampliar a transparência e a participação social no planejamento e monitoramento das ações de saúde no território, garantir a definição e o monitoramento das DOMI de acordo com as diretrizes do SUS e em conformidade com normas e, especialmente, a satisfação das necessidades em saúde da população.
Palavras-chave: Planejamento em Saúde; Políticas, Planejamento e Administração em Saúde; Regionalização da Saúde; Diretrizes para o Planejamento em Saúde; Análise da Situação de Saúde.
ABSTRACT
Planning in the Unified Health System (SUS) is one of the mechanisms to ensure the uniqueness and constitutional principles of the system. The Health Plan is the central planning instrument for defining and implementing all SUS initiatives. To analyze the Municipal Health Plans (PMS) prepared for the period from 2022 to 2025, in accordance with the recommendations for planning in the SUS, Bahia's municipalities were investigated, based on the documents available in the DigiSUS Manager System - Planning Module. 125 municipalities were analyzed, a random and representative sample of PMS approved by the respective Municipal Health Councils (CMS), stratified by health macro-regions. Four dimensions were observed: characteristics of the municipality; social participation and transparency; normative; and consistency. The results showed that most municipalities are rural (71%) and have a population of up to 50,000 inhabitants (91%). Some documents attached to the system did not correspond to the PMS or the CMS resolutions and 15% of the analyzed plans did not mention social participation in the elaboration. Only 2% presented a health situation analysis containing all the recommended topics, with descriptions of socio-sanitary conditions (97%) and the structure of the health system (81%) being more frequent. The majority (94-97%) contained guidelines, objectives, targets and indicators (DOMI) but it was observed, for some municipalities, inconsistencies in the DOMI described in the attached PMS document, compared to those typed in the system. Only 53% presented the monitoring and evaluation process. Most PMS referred to some of the government planning and budget instruments (74%) and to regionalization in health (55%). This study suggests the urgent need to qualify the PMS, to increase transparency and social participation in the planning and monitoring of health actions in the territory, guarantee the definition and monitoring of the DOMI in accordance with the SUS guidelines and in compliance with the norms and, especially, with the health needs of the population.
Keywords: Health Planning; Health Policy, Planning and Management; Regional Health Planning; Health Planning Guidelines; Diagnosis of Health Situation
INTRODUÇÃO
O planejamento no Sistema Único de Saúde (SUS) é uma função gestora de todos os entes federados que, além de requisito legal, é um dos mecanismos relevantes para assegurar a unicidade e os princípios constitucionais do sistema. Ele expressa as responsabilidades dos gestores de cada esfera de governo (federal, estadual e municipal) em relação à saúde da população que vive em seu território.
Dessa forma, o Plano de Saúde (PS) é o instrumento de planejamento central para registrar a definição dos rumos e as perspectivas de implementação de iniciativas no âmbito da gestão do SUS para o período de quatro anos. Norteia, portanto, a elaboração do planejamento e orçamento do governo em relação à saúde e é a base não apenas para a execução, mas também para o acompanhamento e a avaliação da gestão do SUS, devendo ser atualizado pelo gestor sempre que necessário.
Estudos buscando identificar a adequação dos PS com as normativas para o planejamento estabelecidas no âmbito do SUS foram encontrados na literatura. As investigações recentes são sobre municípios das regiões Sul e Sudeste do Brasil: três sobre municípios de Santa Catarina 1; 2; 3, uma sobre o estado de São Paulo4 e duas contemplando municípios de Minas Gerais5; 6, todas considerando os quadriênios de 2014 a 2017 ou de 2018 a 2021.
Diante do papel estratégico e primordial dos PS para o planejamento do SUS, a transparência da gestão e a melhoria do acesso da população aos serviços de saúde, este trabalho objetivou realizar uma análise dos Planos Municipais de Saúde (PMS) 2022-2025 dos municípios da Bahia, na região Nordeste do Brasil, quanto ao atendimento dos critérios normativos e de qualidade, a partir das informações e dos documentos disponíveis no sistema oficial do Ministério da Saúde (MS), com o intuito de produzir conhecimentos que possam subsidiar a construção de iniciativas de apoio à qualificação da gestão.
Referencial teórico-metodológico
Desde a descentralização dos serviços e ações de saúde no Brasil, a gestão municipal do SUS tornou-se um espaço privilegiado de implementação de políticas de saúde e potencializador de práticas de planejamento em saúde que visem ações para alcançar os objetivos pactuados com outras instâncias governamentais e os princípios constitucionais7. Neste sentido, o Plano de Saúde (PS) deve ser reconhecido como um instrumento norteador da gestão do sistema de saúde que, quanto melhor elaborado for, mais provável será o cumprimento das ações propostas8. Desta forma, pode-se afirmar que, quanto mais próximo estiver das recomendações para o planejamento no SUS e dos próprios princípios organizativos do sistema mais qualificado tornar-se-á este documento.
De acordo com a normativa do Ministério da Saúde9, o PS é um instrumento para o planejamento no âmbito do SUS que, consubstanciado com as respectivas Programações Anuais de Saúde (PAS), os Relatórios Detalhados do Quadrimestre Anterior (RDQA) e os Relatórios de Gestão (RAG), compõe um processo para operacionalização integrada, solidária e sistêmica do SUS.
A elaboração dos instrumentos de planejamento do SUS deve estar articulada com esses princípios e com os demais instrumentos de planejamento e orçamento governamental: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) 10. Ressalta-se ainda a necessidade de vislumbrar a regionalização e a organização do sistema de saúde em rede como estratégias fundamentais para consolidação dos princípios de Universalidade, Integralidade e Equidade9.
Após elaborado, o PS deve ser inserido no sistema DigiSUS Gestor – Módulo Planejamento (DGMP), uma plataforma digital instituída pelo Ministério da Saúde em 201911, respeitando a lógica do planejamento em saúde e submetendo o registro dos instrumentos de acordo com a sequência do fluxo legalmente estabelecido para a prestação de contas dos gastos públicos em saúde. No entanto, apenas as Diretrizes, Objetivos, Metas e Indicadores (DOMI) dos planos de saúde são preenchidas no DGMP. Quanto ao documento do PS na íntegra, é solicitado ao gestor que o anexe ao sistema. Este documento deve ser composto minimamente por: Análise de Situação de Saúde (ASIS), DOMI, e Monitoramento e Avaliação, conforme preconizado pela normativa9. No caso da ASIS, constitui-se do processamento e análise de um conjunto de dados que caracterizam a população de um determinado território, auxiliando na identificação das necessidades de saúde da população. Esta deve apresentar minimamente sete temas que compõem o Mapa da Saúde: estrutura do sistema de saúde; redes de atenção à saúde; condições sociossanitárias; fluxos de acesso; recursos financeiros; gestão do trabalho e da educação na saúde; e ciência, tecnologia, produção e inovação em saúde e gestão9.
Além da obrigatoriedade dos municípios de apresentarem os planos no sistema DGMP, é recomendado que a gestão estimule e valorize a participação da comunidade na elaboração e na aprovação dos PS, incluindo a escuta das demandas populares elencadas nas Conferências de Saúde em cada esfera de gestão2; 9; 10; 11. Dessa forma, este registro no sistema também colabora com a transparência da gestão pública, pois a partir daí torna-se público para qualquer cidadão o PS aprovado e seus anexos em outro portal eletrônico mantido pelo Ministério da Saúde.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal de análise documental dos PMS para o período 2022-2025 inseridos no sistema DGMP. Para caracterização da população em estudo, do total de quatrocentos e dezessete municípios (417) baianos, foram verificadas, a partir dos registros contidos no DGMP, as informações sobre a identificação de cada município, suas respectivas populações, regiões, macrorregiões de saúde e a situação do Plano de Saúde, contemplando os status de “não iniciado”; “em elaboração”; “em análise no Conselho de Saúde”; “retornado para ajustes”; “aprovado com ressalvas” ou “aprovado”. Complementarmente aos dados do DGMP, foram coletadas informações sobre a tipologia de cada município, conforme classificação do IBGE12, no site dessa instituição.
Excluiu-se do estudo o conjunto de municípios sem plano de saúde aprovado pelos respectivos Conselhos Municipais de Saúde (CMS) no DGMP até a data da coleta dos dados. Foi constituída então uma amostra aleatória simples, representativa dos PMS aprovados e estratificada proporcionalmente ao número de municípios existentes em cada macrorregião de saúde da Bahia. O cálculo do tamanho da amostra considerou 95% de confiança e 5% de margem de erro. Dessa forma, dentre os 183 PMS 2022-2025 aprovados no DGMP até 14 de outubro de 2022, foram selecionados 125 para compor a análise (Tabela 1).
Tabela 1. Amostra estratificada conforme a proporção de municípios nas Macrorregiões de Saúde, Bahia, outubro de 2022.
Macrorregião de Saúde |
Municípios (n) |
Proporção (%)1 |
Planos Municipais de Saúde Aprovados |
Amostra Estratificada1 |
CENTRO-NORTE |
38 |
9% |
27 |
12 |
CENTRO-LESTE |
72 |
17% |
34 |
22 |
EXTREMO SUL |
21 |
5% |
5 |
5 |
LESTE |
47 |
11% |
21 |
14 |
NORDESTE |
33 |
8% |
19 |
10 |
NORTE |
28 |
7% |
14 |
8 |
OESTE |
37 |
9% |
15 |
11 |
SUDOESTE |
73 |
18% |
28 |
23 |
SUL |
68 |
16% |
20 |
20 |
Bahia |
417 |
100% |
183 |
125 |
1 Valores foram aproximados para números inteiros.
Todos os dados foram coletados na data referida anteriormente. Contudo, após a identificação no DGMP de registros inconsistentes de regiões e macrorregiões de saúde para alguns municípios, conforme o Plano Diretor de Regionalização vigente na Bahia13 serem observados, comunicou-se ao departamento competente no Ministério da Saúde para ajustes e atualização no sistema. Foi então realizada nova coleta dos dados de identificação no dia 3 de novembro de 2022, mantendo a proporcionalidade de cada macrorregião na amostra.
Todos os dados foram coletados, sistematizados e analisados de forma colaborativa pelos autores, a partir da leitura das telas do sistema DGMP e dos documentos dele extraídos em formato de planilhas ou PDF, registrados em formulário no Microsoft Excel®, organizando as variáveis em dimensões formuladas a partir do referencial teórico e normativo adotado (Quadro 1).
Quadro 1. Variáveis do estudo conforme a dimensão de análise e a fonte dos dados da pesquisa.
Dimensão |
Variáveis |
Fonte |
Características do Município |
- Identificação (nome). - Macrorregião de saúde (nome). - Região de Saúde (nome). |
Planilha extração DGMP. |
- Tipologia municipal (Intermediário adjacente, rural adjacente, rural remoto ou urbano). |
IBGE. |
|
- População (número de habitantes). |
Tela DGMP. |
|
Participação social e Transparência |
- Ano da Conferência Municipal de Saúde. - Resolução do CMS anexa (sim ou não). |
Tela DGMP. |
- Correspondência do anexo à resolução de aprovação do PMS (sim ou não). - Assinatura do(a) Presidente(a) do CMS na resolução (sim ou não). - Resolução homologada (assinada ou publicada em diário oficial) pelo gestor municipal (sim ou não). |
Documento Anexado ao DGMP como Resolução do CMS |
|
- Documento do PMS anexo (sim ou não). |
Tela DGMP. |
|
- Correspondência do anexo ao PMS (sim ou não). - Menção a participação popular na elaboração (sim ou não). |
Documento Anexado ao DGMP como PMS |
|
Normativa |
- Presença de Análise situacional (sim ou não). - Estrutura do sistema de saúde (sim ou não). - Redes de atenção à saúde (sim ou não). - Condições sociossanitárias (sim ou não). - Fluxos de acesso (sim ou não). - Recursos financeiros (sim ou não). - Gestão do trabalho e da educação na saúde (sim ou não). - Ciência, tecnologia, produção e inovação em saúde e gestão (sim ou não). - Definição de diretrizes (sim ou não). - Definição de objetivos (sim ou não). - Definição de metas (sim ou não). - Definição de indicadores (sim ou não). - Processo de monitoramento e avaliação (sim ou não) |
Documento Anexado ao DGMP como PMS |
Consistência |
- Quantidade dos demais instrumentos de planejamento (PPA, LDO e LOA) mencionados (1, 2 ou 3). -
Diretrizes no documento do PMS idênticas - Objetivos no documento do PMS são idênticos aos apresentados no DGMP (sim ou não). - Metas no documento do PMS são idênticas às apresentadas no DGMP (sim ou não). - Indicadores no documento do PMS são idênticos aos apresentados no DGMP (sim ou não). - Menção sobre a regionalização em saúde (sim ou não). |
Documento Anexado ao DGMP como PMS e DOMI digitada no DGMP |
A investigação utilizou documentos e informações de domínio público. Portanto, em conformidade com a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, dispensou-se aprovação pelo sistema de Comitês de Ética em Pesquisa e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa14.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os 125 municípios com PMS aprovados pelos CMS selecionados no estudo estão distribuídos espacialmente no território da Bahia conforme ilustrado na Figura 1. A maioria deles tem população de até 50 mil habitantes (91%) e é classificada como rural remoto ou rural adjacente (72%), alinhando-se à caracterização geral do Estado da Bahia, em que 89% dos municípios possuem até 50 mil habitantes e 68% estão classificados pelo IBGE12 como municípios rurais. As regiões de saúde de Brumado e Feira de Santana, pertencentes às Macrorregiões de Saúde com maior número de municípios, Sudoeste e Centro-Leste, foram as mais frequentes na amostra, com nove PMS analisados em cada uma.
Figura 1. Distribuição dos municípios no território, conforme os Planos Municipais de Saúde analisados no estudo, Bahia, outubro de 2022.
No que se refere à dimensão Participação Social e Transparência, os registros denotam que o ano de realização da última Conferência Municipal de Saúde destes municípios foi entre 2017 e 2022, sendo que na maioria (73%) foi realizada no ano anterior ao de início da vigência do PMS em análise (2021). Destaca-se que nenhum município informou a realização da conferência no ano de 2020, e dois municípios informaram que sua última conferência ocorreu em 2017, antes mesmo da vigência do PMS do quadriênio anterior ao analisado.
Em relação à resolução de aprovação do PMS pelo CMS, apenas 1 município não a anexou ao DGMP. Entretanto, dos 124 restantes, 11 (9%) anexaram documentos que não correspondiam à tal resolução. Entre as 113 resoluções analisadas, 7% não estavam assinadas pelo Presidente do CMS e 41% não estavam homologadas ou publicadas em Diário Oficial pelo gestor municipal.
Vale ressaltar que os documentos dos PMS estavam anexados ao DGMP em 98% dos casos, correspondendo a 123 municípios. No entanto, além dos dois gestores que não anexaram os planos de seus municípios, cinco anexaram documentos que não consistiam de fato no PMS, referindo-se a outros instrumentos de planejamento, como o PPA, a PAS ou até a uma cópia das DOMI gerada pelo próprio DGMP. Assim, a amostra dos PMS aprovados continha sete casos (6%) que não puderem ser analisados em seu conteúdo completo, por questões que afetaram a transparência das informações.
Constatou-se ainda que 15% dos documentos anexos correspondentes aos PMS completos não mencionavam em seu conteúdo a participação social no processo de elaboração do plano. Resultado parecido foi encontrado em uma investigação sobre os PMS de municípios de Santa Catarina, onde evidenciou-se que cerca de 83% dos planos foram elaborados de forma participativa, porém destacou-se que as conferências de saúde foram pouco referenciadas para a elaboração das diretrizes, sendo apontadas em pouco mais da metade dos casos analisados2.
A democratização da gestão em saúde demanda um planejamento intencional e consciente por parte dos gestores na organização das ações e dos registros, que viabilizem a participação cidadã, assegurando, além do cumprimento das diretrizes das conferências prévias, a realização de audiências públicas durante o processo de elaboração e discussão do PMS9; 10; 15. Deve-se priorizar, portanto, no âmbito do planejamento em saúde, a experiência de relações de poder horizontais, na qual as decisões são compartilhadas pelos mais diversos grupos sociais, desde a elaboração até a avaliação das ações8.
Posto isto, o resultado encontrado no presente estudo alerta para a necessidade de resgate do PMS enquanto instrumento potente para a transformação social, como apontou Reisdorfer et al. 16, ao relatar o processo de elaboração do primeiro PMS de Guaramirim-SC (2010-2013), que propiciou uma maior integração entre os diferentes setores do governo municipal, o início de uma cultura de planejamento no setor saúde, a priorização da Atenção Primária em Saúde e uma crescente mobilização comunitária.
Na dimensão normativa, observou-se que a ASIS estava presente na maioria (97%) dos 118 documentos dos PMS devidamente anexados no DGMP. Este componente do PMS constitui-se num mapa de saúde do território, fornecendo informações para o planejamento. Dessa forma, quanto mais elementos puderem ser agregados na ASIS, mais enriquecido e preciso será o subsídio para o planejamento integrado e acompanhamento do desenvolvimento do sistema de saúde em termos de acesso da população aos serviços e de resultados produzidos nas diversas regiões de saúde10.
Por outro lado, apenas dois dos PMS analisados (cerca de 2%) continham todos os sete temas que deveriam compor o Mapa de Saúde do município. A maioria (63%) apresentou entre 1 e 4 temas recomendados pelo MS9; 10. Outros dois PMS apresentaram seções intituladas ASIS, porém o conteúdo, apesar de trazer algumas informações sobre o município, não contemplou nenhum dos temas preconizados. Esses dados se aproximam a realidade encontrada nos PMS do Estado de São Paulo e contrastam com a de Santa Catarina para período de 2014-2017, onde 1,81% e 92% apresentaram análise situacional completa, respectivamente3; 4.
Conforme detalhado na Figura 3 quanto aos elementos de ASIS, destacaram-se, com as menores frequências, os elementos de “Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde e Gestão” (3%) e “Fluxos de Acesso” (21%). Já as “Condições Sociossanitárias” e “Estrutura do Sistema de Saúde” foram as mais frequentes, com 97% e 81%, respectivamente.
Gráfico 1. Percentual de elementos da ASIS presentes nos PMS 2022-2025 analisados, amostra da Bahia, outubro de 2022.
Nesse diapasão, os dados desse estudo corroboraram novamente com o de Ramos et al. 4, que ao analisarem os PMS paulistas encontraram os percentis mais baixos para o que se refere aos temas de ciência, tecnologia, produção e inovação em saúde e gestão (10%) e fluxo de acesso (13%), e mais altos para as condições sociossanitárias (74%) e a estrutura do sistema de saúde (87%).
O levantamento de problemas é fundamental para que a elaboração de um PMS possa organizar respostas às necessidades de saúde da população8. Porém, é importante que os temas estejam correlacionados e, para além de verificar o perfil de morbimortalidade e os serviços disponíveis para a população, sejam avaliadas as condições de organização, funcionamento e acesso ao sistema de saúde no contexto social de cada território.
Um estudo com a análise de quatro municípios brasileiros demonstrou que reconhecer as necessidades de saúde apenas baseando-se nas doenças, seus respectivos riscos e no perfil de utilização dos serviços, sem relacionar essas condições à situação de saúde da população em sentido mais amplo, foi uma das limitações dos PMS. As autoras concluíram que desconsiderar a determinação social do processo saúde-doença na interpretação da situação de saúde e na elaboração do PMS gera um prejuízo na identificação de necessidades em saúde de grupos sociais vulneráveis e na organização de práticas de gestão em favor da integralidade e da equidade17.
Destaca-se, portanto, a ASIS como processo contínuo e estratégico de análise e síntese que permite descrever, explicar e avaliar a tríade saúde-doença-atenção em uma população e contexto definidos, tendo em conta os seus determinantes sociais, com a finalidade principal de criar evidências válidas e oportunas para informar a decisão em saúde pública18. Desta forma, representa a base primordial para nortear a formulação das ações e serviços de saúde e a definição de diretrizes e metas a serem implementadas pelos gestores e acompanhadas pelos conselhos de saúde10, devendo estar refletidas nas DOMI do PMS.
Quanto ao demais componentes obrigatórios nos PS, dentre os 118 documentos de PMS analisados, 94% continham as diretrizes; 97% os objetivos; 94% as metas e 86% os indicadores, enquanto 53% apresentaram questões relativas ao processo de monitoramento e avaliação.
Destaca-se que, por um lado, as DOMI devem traduzir as prioridades sanitárias em compromissos a serem cumpridos pela gestão e devem ser definidas visando responder às necessidades de saúde da população identificadas na ASIS10; por outro lado, a ausência de monitoramento e avaliação, enquanto processo sistemático e contínuo de acompanhamento de indicadores de saúde, visando a obtenção de informações, em tempo oportuno, para subsidiar a tomada de decisão, pode inviabilizar a verificação de execução das atividades e dificultar a redução de problema e correção de rumos, bem como contribuir para que o PMS não se efetive como um instrumento estratégico de gestão, mas somente um mero documento formal5; 15.
Ainda sobre o conteúdo dos documentos dos PMS, na dimensão de consistência, observou-se que a maioria (74%) mencionou ao menos um dos demais instrumentos de planejamento governamental (PPA, LDO ou LOA), mas apenas 35% citaram todos os três. Por seu turno, foram identificadas menções sobre a regionalização em saúde em 55% dos PMS. Verificou-se também que as DOMI registradas no DGMP e as apresentadas nos PMS anexados corretamente ao sistema (118) em alguns casos não eram idênticas (Gráfico 2).
Gráfico 2. Percentual de municípios conforme a consistência entre a descrição das DOMI constantes no PMS 2022-2025 e as DOMI preenchidas no sistema DGMP, Bahia, 2022.
Destaca-se que as maiores inconsistências apresentadas foram no registro de metas e indicadores (43%). A identificação de algumas inconsistências entre as DOMI no documento do PMS e àquelas registradas no DGMP aponta para uma inconformidade, tendo em vista que as informações preenchidas pelo gestor no sistema devem ser idênticas àquelas aprovadas pelo CMS e aparecerão no relatório de gestão para prestação de contas tal como no sistema. Qualquer alteração no PMS e registrada no sistema deve ser comunicada ao conselho para nova avaliação11 e, nestes casos, os PMS não estavam em análise e sim aprovados pelos CMS.
À época de vigência do sistema anterior, o SargSUS, não havia a exigência de preenchimento manual das DOMI, bastando ao gestor apenas anexar o documento, não havendo qualquer digitação ou verificação do sistema quanto ao conteúdo. Destarte, nos estudos Milani et al. 1 e Fuginami, Colussi e Ortiga3, em análise dos PMS referentes ao ciclo de 2014-2017 de municípios catarinenses por meio do SargSUS, observou-se problemas como a falta de estabelecimento de diretrizes, metas, objetivos, além de apresentar dados de difícil mensuração.
De modo geral, o estudo em tela apontou dados similares aos encontrados nas investigações envolvendo municípios de outras regiões do território brasileiro que, ao analisar a adequação dos PMS ao cumprimento das normativas vigentes, apontaram para a ausência ou incompletude de alguns dados. Indicando a relevância da realização das conferências de saúde e a necessidade de capacitação dos profissionais envolvidos na atividade de elaboração dos PMS para, além do cumprimento das determinações legais, ampliar a visão acerca de uma análise crítica da situação de saúde para a construção de planos coerentes, qualificando a gestão pública em saúde2; 3; 4; 5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora a realização de análise documental possa representar uma limitação para que este estudo reflita o que de fato ocorreu durante o processo de elaboração do PMS, ou o que se pretendeu em determinado contexto, os registros de sistema possibilitaram análises que fornecem importantes subsídios para a construção de conhecimentos sobre o planejamento em saúde no contexto da Bahia.
Os dados coletados para o desenvolvimento deste estudo revelaram, antes de tudo, uma incipiente cultura de registro formal do planejamento em saúde no conjunto de municípios baianos, visto que até outubro de 2022 a maioria deles (56%) deles não havia concluído o processo de planejamento para o quadriênio de 2022 a 2025, com aprovação dos PMS pelos respectivos CMS no DGMP. Mesmo que não haja prazo legal para o registro das informações dos PMS no sistema, a despeito de a normativa definir que devem ser elaborados em período compatível com o do PPA19, estes necessitariam estar finalizados ainda em 2021. A ausência de realização de conferências de saúde no ano de 2020 possivelmente está relacionada à emergência da COVID-19 naquele ano, já os casos em que a última conferência foi realizada em 2017 sugerem que não houve escuta das propostas populares para o novo quadriênio nestes municípios. Essas desconexões entre planejamento e execução das políticas podem se refletir na apresentação tardia dos instrumentos de planejamento e orçamento20.
Estas e outras fragilidades identificadas na análise dos PMS selecionados na amostra, como os problemas com a transparência das informações, a baixa compatibilização com todos os demais instrumentos de governo para o planejamento e orçamento e inconsistências nas DOMI podem dificultar o processo de planejamento dos municípios baianos e o exercício do controle social em saúde. Por outro lado, para os casos em que os PMS não foram registrados de forma completa e consistente, ou não se referiram de maneira explicita à participação coletiva para a sua elaboração, pode ser considerada a hipótese de que existiu a efetiva elaboração do PMS contemplando a participação social durante o processo, na prática, porém sem registro documental. Entretanto, quaisquer das hipóteses representariam inconformidades normativas9, confirmando a fragilidade da participação social na gestão das políticas de saúde20, ainda que se reconheça que um planejamento menos estruturado e restrito a gestores implicados no projeto do SUS também possa contribuir para condução de ações de saúde de acordo com os seus princípios7.
Cabe destacar também que a ASIS concentrada nas condições sociossanitárias e estruturais do sistema de saúde, explorando superficialmente outros temas relevantes para o planejamento e execução das ações em saúde, tais como os fluxos de acesso e aspectos relacionados à ciência, tecnologia e inovação, pode refletir a reprodução do pensamento hegemônico concentrado em problemas de saúde e ofertas de serviços sem considerar a organização do sistema, a determinação social do processo de saúde e doença e a necessidade de desenvolvimento de força de trabalho e de tecnologias inovadoras que integrem, ampliem e qualifiquem a rede de atenção à saúde.
A maioria dos municípios ter elaborado as DOMI nos PMS pode denotar um aspecto positivo da implementação do DGMP, sendo um possível reflexo da indução realizada por meio da obrigatoriedade imposta para o preenchimento dessas informações em campo específico no sistema.
Sob outro enfoque, ressalta-se que o fato de alguns municípios não apresentarem os PMS de acordo com a normativa, e das maiores inconsistências apresentadas nas DOMI serem no tocante ao registro de metas e indicadores, pode indicar dificuldade na elaboração desses instrumentos de planejamento por parte dos gestores e equipe técnica dos municípios. Admite-se também considerar a hipótese da inserção de informações e documentos sem o compromisso com sua qualidade e precisão, apenas com o intuito de cumprir a exigência normativa de apresentação em meio digital.
Neste sentido, esta investigação representa um avanço ao agregar a análise da dimensão de consistência, não abordada em estudos anteriores, seja relacionada às DOMI, ao processo de planejamento e orçamento governamental ou às diretrizes de regionalização.
Por fim, pode-se sugerir ainda a relação dos resultados com alguns aspectos não evidenciados no estudo, como a insuficiência de trabalhadores com qualificação em planejamento, para apoio à gestão nos territórios, bem como a alta rotatividade desses trabalhadores; o desconhecimento da norma; a necessidade de educação permanente em saúde, entre outros fatores que podem afetar a capacidade técnica do município na elaboração do PMS, demandando outras investigações a apurar as diferentes razões.
Conclui-se assim que os resultados desse trabalho demonstraram a premência de qualificação dos planos municipais de saúde para ampliar a transparência e a participação social no planejamento e monitoramento das ações de saúde no território, garantir a definição e o monitoramento das DOMI de acordo com as diretrizes do SUS e em conformidade com as normas e, especialmente, a satisfação das necessidades em saúde da população.
REFERÊNCIAS
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Recebido: 26 de agosto de 2023. Aceito: 30 de setembro de 2023
Correspondência: Desirée dos Santos Carvalho. E-mail: desiree.carvalho@saude.gov.br
Conflito de Interesses: o autor declarara não haver conflito de interesses
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