Rev. Adm. Saúde (On-line), São Paulo, v. 23, n. 90: e341, jan. – mar. 2023, Epub 23 mar. 2023
http://dx.doi.org/10.23973/ras.90.341
ARTIGO ORIGINAL
Retrato da judicialização da saúde relacionada à covid-19 no município de São Paulo entre março e agosto de 2022, e os principais resultados obtidos pelas ações adotadas
Portrait of the judicialization of health related to covid-19 in the city of São Paulo between March and August 2022, and the main results obtained by the actions taken
Paulo Kron Psanquevich1; Adriana Spinola Gabriel2, Rafael Augusto Galvani Fraga Moreira3; Benedicto Accacio Borges Neto4
1. Médico, especialista em administração de serviços de saúde. Diretor do Departamento Técnico às Demandas Judiciais em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde, São Paulo SP
2. Cirurgiã-Dentista, aprimoranda em segurança do paciente e qualidade em serviços em saúde. Assessora III do Departamento Técnico às Demandas Judiciais em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde, São Paulo SP
3. Advogado. Procurador do Município, São Paulo SP
4. Médico, especialista em gestão pública em saúde e saúde pública. Secretário-Executivo de Regulação, Avaliação, Monitoramento e Parcerias da Secretaria Municipal de Saúde, São Paulo SP
RESUMO
O período da pandemia pelo coronavírus se constituiu em um episódio desafiador aos gestores públicos do Sistema Único de Saúde, os quais procuraram equalizar os recursos da saúde para o bem coletivo em detrimento a situações individuais, especialmente no enfrentamento preventivo da doença, com a promulgação do isolamento social, estabelecimento de cuidados de etiqueta respiratória e pela administração de imunizantes, bem como em relação ao tratamento propriamente dito. Um reflexo das ações exitosas do município de São Paulo se deu com o alinhamento dos órgãos do Sistema de Justiça, especialmente, o Poder Judiciário, em relação aos desdobramentos das ações judiciais individuais neste período, onde os autores buscavam desde escolher o tipo vacinal (sommelier de vacinas) a vaga em leito de terapia intensiva. Em um total de 83% de indeferimento de liminares no conjunto de 252 ações judiciais relacionadas à covid-19 no período (correspondendo a 9,1% do total das 2.771 ações judiciais em saúde, recebidas durante a pandemia), houve concordância do Poder Judiciário aos procedimentos adotados, bem como aos pareceres técnicos subscritos nos processos, pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, refletindo, o esforço empreendido pela SMS, desde a logística de distribuição vacinal, instalação de hospitais de campanha até a ampliação do parque de leitos de terapia intensiva. Em sentido oposto ao verificado no restante do país, houve diminuição do número de ações judiciais em saúde no município de São Paulo, no período pandêmico em relação ao ano anterior, o que sugere que o enfrentamento da maior crise sanitária do século se deu de forma promissora e como um modelo de gestão exitoso de combate à pandemia no município.
Palavras-chave: Sistema Único de Saúde; legislação sanitária; covid-19; atenção à saúde; políticas públicas de saúde; poder judiciário.
ABSTRACT
The period of the coronavirus pandemic was a challenging episode for public managers of the National Unified Health System, who sought to equalize health resources for the collective good to the detriment of individual situations, especially in the preventive confrontation of the disease, with the enactment of social isolation, establishment of respiratory etiquette care and the administration of immunizers, as well as in relation to the treatment itself. A reflection of the successful actions of the municipality of São Paulo was the alignment of the Justice System bodies, especially the Judiciary, in relation to the unfolding of individual lawsuits in this period, where the authors sought from choosing the type of vaccination (vaccination sommelier) the vacancy in an intensive care bed. In a total of 83% rejection of injunctions in the set of 252 lawsuits related to covid-19 in the period (corresponding to 9.1% of the total of 2,771 lawsuits in health, received during the pandemic), there was agreement by the Judiciary to the procedures adopted, as well as to the technical opinions subscribed in the processes, by the São Paulo Municipal Health Department, reflecting, the effort undertaken by the department, from the logistics of vaccine distribution, installation of field hospitals to the expansion of the park of intensive care beds. In the opposite direction to what was seen in the rest of the country, there was a decrease in the number of lawsuits in health in the municipality of São Paulo, in the pandemic period in relation to the previous year, which suggests that the confrontation of the biggest health crisis of the century took place in a promising way and as a successful management model to combat the pandemic in the municipality.
Keywords: Single Health System; health legislation; covid-19; health care; public health policies; judicial power.
INTRODUÇÃO
O período pandêmico do coronavírus foi especialmente desafiador ao planeta dado o desconhecimento acerca da doença, seu potencial contágio e desdobramentos graves1. Embora o Brasil seja um país de dimensões continentais, com distâncias muito grandes entre estados e cidades, isto não impediu o avanço geométrico da doença no país2. Neste particular, a divergência de entendimento entre os gestores em nível federal, estadual e municipal trouxe maior dificuldade ainda para o combate a pandemia3. No município de São Paulo (MSP), adotou-se plano respaldado da comunidade científica, com inserção do isolamento social, distribuição estratégica do esquema vacinal e ampliação dos serviços de saúde como forma de priorizar o atendimento dos pacientes portadores de covid-194.
Com o estabelecimento de protocolos, pôde-se controlar adequadamente a pandemia, com redução de mortes e sequelas5.
Todas as ações tiveram como pano de fundo o respaldo científico, com órgãos canalizadores da saúde, sobretudo a Organização Mundial da Saúde (OMS)6.
A iniciar pelo distanciamento social, o qual possibilitou a redução drástica do contágio pela covid-19, que, no MSP, se deu mediante a publicação do Decreto nº 59.283 de 16 de março de 2020, cujo parâmetro-chave utilizado se deu pelo monitoramento do fluxo de internação em unidades de terapia intensiva7.
Mediante a implantação do distanciamento social, outras estratégias alternativas após o relaxamento destas intervenções, permaneceram sendo utilizadas de forma concomitante, como o uso de máscaras faciais, verificação de temperatura e rastreamento de contatos8 - recomendações adotadas, também pelo MSP, mediante o Decreto nº 60.396 de 23 de julho de 2021.
Vários estudos procuraram estimar a importância de medidas de restrição à circulação como forma de redução da mortalidade pelo covid-19. Nos países da União Europeia, publicação da revista Nature pelo Imperial College, Reino Unido, estimou em todos os 11 países combinados, que, entre 12 e 15 milhões de indivíduos foram infectados pelo SARS-CoV-2 até 4 de maio de 2020, representando entre 3,2% e 4,0% da população e que as principais intervenções não farmacêuticas e bloqueios, em particular, tiveram um grande efeito na redução da transmissão9.
Outro tópico fundamental no combate à pandemia pelo coronavírus se deu pela imunização da população. A OMS, neste particular, declarou que a proteção induzida pelas vacinas covid-19 contra a doença reduz o risco de desenvolver a doença e suas consequências, além de possibilitar proteção das pessoas que ainda não estavam vacinadas, reduzindo a transmissão; que, as vacinas são importantes, sobretudo, para proteção das pessoas com maior risco de doenças graves causadas pelo covid-19, como profissionais de saúde, adultos mais velhos ou idosos e pessoas com outras condições médicas10, cuja estratégia também foi adotada pelo MSP, contida no Decreto nº 60.396 de 23 de julho de 2021.
O chamado passaporte vacinal adotado pelo MSP com o Decreto nº 60.396 de 23 de julho de 2021, também o foi por vários países, cuja motivação foi expressa no periódico New England Journal of Medicine (NEJM), o qual declarou ser justo impor alguma consequência às pessoas que recusassem a vacinação, especialmente se, coletivamente, essa opção colocasse a imunidade coletiva fora de alcance11.
Tal fato também foi debatido no Brasil, pela Sociedade Brasileira de Imunizações, com conclusões semelhantes ao estudo do NEJM12. Neste particular, o MSP seguiu o protocolo de inclusão de vacinação por grupos prioritários, observando os passos preconizados pela OMS13.
Outra ação determinante do MSP se deu por meio da implantação de hospitais de campanha, bem como ampliação dos leitos de UTI nos hospitais próprios municipais, privados com e sem fins lucrativos, possibilitando o tratamento precoce, com mais vidas salvas e diminuindo as sequelas ocasionadas pelo coronavírus14.
Em relação à judicialização propriamente dita, de acordo com pesquisa nacional em publicação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), houve expressivo aumento das ações judiciais em saúde, no âmbito nacional em 2020, chegando a 58.744 casos novos, atribuindo-se às demandas ocasionadas pelo covid-1915, ao passo que esta realidade não se refletiu no MSP, com número de ações em 2020, inferior ao ano de 201916.
Neste mesmo estudo, foi relatado que um terço das secretarias municipais constituiu instâncias de cooperação intersetorial para discussão das demandas de saúde15. Nesta seara, de forma precoce, a SMS se integrou junto aos Órgãos do Sistema de Justiça para discussão dos casos antes da judicialização16.
Em relação ao compêndio de decisões judiciais relacionadas à covid-19, publicadas no site do TRF-4, observamos que boa parte das decisões vai de encontro à regra sanitária, como a declaração de inconstitucionalidade de lei que impedia exigência de vacinação contra covid-19 e o rigor aos casos de cidadãos que, eventualmente, descumpriram o isolamento social17. Neste estudo, tal fato se repetiu no MSP em relação ao Tribunal de Justiça de São Paulo e Tribunal Regional Federal da 1ª Região, porém, de forma quase unânime, em concordância aos protocolos administrativos, adotados no MSP para o combate à covid-19.
Objetivos: apresentação da consolidação dos dados em relação à judicialização da saúde relacionada à covid-19 no município de São Paulo e os principais resultados obtidos pelas ações adotadas, visando o enfrentamento da questão.
MATERIAL E MÉTODOS
Tipo de Estudo: trata-se de um levantamento documental, descritivo, retrospectivo com análise quantitativa amostral.
Local do estudo: Gabinete da SMS.
Amostra: ações judiciais relacionadas à covid-19 no período de 01 de março de 2020 a 31 de agosto de 2022.
Instrumento de coleta de dados
Foram utilizados:
· Banco de pareceres técnicos do Departamento de Apoio Técnico às Demandas Judiciais em Saúde (DJES) subordinado à Secretaria Executiva de Regulação, Monitoramento, Avaliação e Parcerias (SERMAP) da SMS, dentre 5.000 arquivos até setembro de 2022
· Bancos de dados da Procuradoria Geral do Município de São Paulo (PGM)
· Pesquisa no sistema SEI da Prefeitura de São Paulo
· Planilhas de monitoramento de ações judiciais do DJES- SERMAP- SMS
RESULTADOS
Tabela 1. Consolidado das ações judiciais relacionadas à covid-19 no período de 01 de março de 2020 a 31 de agosto de2022. Fonte: pareceres do Departamento de Apoio Técnico às Demandas Judiciais em Saúde (DJES-SERMAP-SMS), Procuradoria Geral do Município de São Paulo (PGM), Sistema SEI da Prefeitura de São Paulo e planilhas de monitoramento de Ações Judiciais do DJES-SERMAP-SMS.
Esclarecimentos
quanto aos itens elencados na Tabela 1:
1) Cirurgia eletiva, consulta e exame: requerentes que contraíram covid-19 e que pleitearam cirurgias, consultas ou exames no período pandêmico, que se tratavam, na verdade, de procedimentos eletivos.
2) Medicamento e insumo: requerentes que contraíram covid-19 e que pleitearam os referidos itens, que não se destinavam à covid-19.
3) Internação: requerentes que contraíram covid-19 e que solicitaram internação.
4) Isolamento social: requerentes que pediram exceção, a eles, da regra do isolamento social.
5) Informação: pedido de informação do MM; juízo para pacientes que se vacinaram contra covid-19 ou a contraíram.
6) Teste: requerentes que pediram para realizar o teste de covid-19 em situações não indicadas tecnicamente.
7) Vacina: requerentes que pleitearam antecipação ou determinada vacina, ou, em sentido contrário, desejavam não se submeter ao passaporte sanitário.
Obs.: no caso das ações de obrigação de fazer/mandado de segurança, eram pleiteados os referidos itens; já, nas ações por indenização, foram solicitados ressarcimentos por possível decidia do Poder Público em fornecer os itens ou em razão de atendimentos supostamente equivocados nas unidades de saúde municipal no que se refere ao tratamento dos autores.
Conforme se observa, o MSP recebeu 2.771 ações judiciais no período da pandemia pelo coronavírus. Destas, 252 foram relacionadas à covid-19, representando 9,1% do total, sendo que em 2019, foram recebidas o total de 1.120 ações judiciais em SMS, número superior ao ano de 2020, no qual foram registradas 894 ações judiciais em saúde16, o que diverge do observado no país, neste período, de acordo com pesquisa nacional publicada pelo CNJ, no qual, em sentido oposto, foi relatado aumento da judicialização da saúde, às custas da covid-19 15.
Os itens “internação” e “cirurgia eletiva” foram os pedidos mais solicitados nas 252 ações judiciais do período pandêmico, correspondendo, respectivamente, a 22,62% e 11,11% do total dos processos judiciais recebidos.
E, por fim, em relação a liminares de ações judiciais relacionadas à covid-19, no MSP foram deferidas pelo Poder Judiciário, 43 tutelas em um total de 252 expedientes judiciais, correspondendo a apenas 17% do total, a demonstrar, em última análise, a concordância pelo Poder Judiciário aos procedimentos adotados e aos pareceres técnicos subscritos nos processos, pela SMS.
CONCLUSÃO
O índice de indeferimento de liminares de ações judiciais relacionada à covid-19 no MSP foi de 83% do total dos processos, correspondendo à concordância pelo Poder Judiciário aos procedimentos adotados e aos pareceres técnicos elaborados por SMS nos processos durante o período pandêmico do covid-19. Diferentemente do observado no restante do país, houve redução do número de ações judiciais em saúde no MSP no período pandêmico em relação ao ano anterior, sugerindo que o enfrentamento da maior crise sanitária do século se deu de forma promissora, e como um modelo de gestão exitoso de combate à pandemia no município.
REFERÊNCIAS
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Recebido: 01 de fevereiro de 2023. Aceito: 20 de março de 2023
Correspondência: Paulo Kron Psanquevich. E-mail: paulokron@prefeitura.sp.gov.br
Conflito de Interesses: os autores declararam não haver conflito de interesses
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