Rev. Adm. Saúde (On-line), São Paulo, v. 22, n. 87: e328, abr. – jun. 2022, Epub 01 ago. 2022
http://dx.doi.org/10.23973/ras.87.328
PERSPECTIVAS
Liderança e Deus
Haino Burmester 1
1. Médico, administrador hospitalar e de sistemas de saúde. Ex-coordenador do Programa CQH, São Paulo SP
Desde pequenas as pessoas são acostumadas a ouvir: “Deus está vendo”; “Papai do Céu não vai gostar”; “Deus castiga” e tantas outras manifestações, pretensamente educativas, que vão pouco a pouco moldando suas personalidades, acostumando-as a aceitarem a presença de um superpoder, acima delas, que as fiscaliza, controla, pune ou premia dependendo de seus comportamentos.
Esta figura humanizada de Deus: um velhinho bondoso de barbas longas e compridos cabelos brancos, que supervisiona tudo que as pessoas fazem no seu dia a dia passou a fazer parte da existência delas de tal forma que não conseguem se afastar da imagem e a ela atribuem muito do seu destino. Porque existe este poder concebido como superior a todos, o livre arbítrio parece ficar comprometido. Esta sensação de viver-se atrelado a um determinismo sagrado compromete a capacidade de cada um exercitar, plenamente, seus próprios saberes e fazeres. Tudo parece ficar subordinado aos sabores deste Deus que governa a vida de todos. Se pedidos por suas graças são fervorosamente feitos, então, as pessoas podem dormir tranquilas porque “Ele” tomara conta delas. Elas não precisam se preocupar com nada mais, desde que se coloquem em suas “santas mãos”. É fácil perceber a castração que este comportamento impõe. Quanto dele leva à dependência sempre de algo que venha de fora e que não esteja relacionado com a capacidade das pessoas de gerirem suas próprias vidas. Elas passam a depender dos outros, às imagens e semelhanças “Dele”.
Tirando atitudes de pessoas fundamentalistas, que acreditam, ipsis literis, nos textos sagrado, parece pouco razoável crer-se que esta figura do “bom velhinho” sobreviva a um escrutínio pouco mais perspicaz. Qualquer pessoa, medianamente instruída, saberá da impossibilidade deste “Senhor” conseguir atender às preces de mais de sete bilhões de pessoas que existem na face da terra, sem falar das outras 108 bilhões que já passaram por ela. “Ele” não poderia “humanamente” se preocupar com todas essas pessoas, controlá-las, fiscalizá-las e muito menos atender aos seus pedidos. Dirão os menos céticos que isto se explica pela fé, força poderosa que faz acreditar naquilo que ajuda as pessoas a viverem em paz consigo mesmas. A busca por esta paz lhes faz acreditar que Deus está em toda parte, controlando a vida de todos. É verdade; “a fé remove montanhas”, mas se houver dependência exclusiva na fé perdem-se as oportunidades para aproveitar os prazeres, desafios, desilusões, fraquezas e as belezas que a vida oferece a todos. As pessoas não vivem suas próprias vidas. Estarão sempre dependentes “Dele”. Se este estado de coisas era possível com as circunstâncias do passado, dificilmente serão compatíveis com a complexidade do mundo no século XXI.
Naquelas circunstâncias, é fácil entender que as pessoas sempre necessitem de algum direcionamento que, se não vem de Deus, vem de alguma alternativa similarmente induzida pelo costume de aceitar determinações superiores. Ou seja, legitimar a hierarquia, quando não, ansiar por ela, como a única forma de as coisas acontecerem. Mais do que legitimar a hierarquia, ter precisão de um “grande irmão”, símile de Deus, que dê orientação e direcionamento. As coisas ficam mais fáceis de serem feitas quando se pode atribuir o mando a alguém onipresente, onisciente e todo poderoso, que libere as pessoas das responsabilidades de iniciativas próprias. Ao mesmo tempo em que as exculpam, em caso de as coisas não darem certo. Isto dá uma, pretensa, sensação de liberdade, quando na verdade submete todos ao jugo do “gênio” encarnado num demiurgo.
Baruch Espinoza, o filosofo racionalista do século XVII, dizia que Deus está em toda parte, tanto assim que sua máxima para esta afirmação era: "Deus, ou seja, a Natureza". Espinosa defendia um determinismo, segundo o qual tudo que acontece é devido às necessidades das pessoas. Para ele, o comportamento humano seria determinado por suas necessidades que, neste sentido, fariam às vezes de um Deus, acompanhando todos os passos das pessoas, para o bem e para o mal. Apesar de Espinoza denominar a substância da natureza como “Deus”, este é diferente do conceito disseminado pelas igrejas, já que não tem vontade ou finalidade, sendo, portanto, imune às preces.
Albert Einstein, o formulador da teoria da relatividade, disse: “minha religião consiste na admiração humilde do espírito ilimitadamente superior que revela a si mesmo nos mais delicados detalhes que somos capazes de perceber com nossas frágeis e débeis mentes”.
Galileu Galilei disse que “não há poder de controle sobre o universo maior do que o poder que nos controla”. Onde estaria este poder, se não na energia da natureza e internamente em cada pessoa?
Portanto, homens da ciência e filósofos insistem numa compreensão de Deus diferente da forma humanizada que condiciona comportamentos tementes de uma punição por mau comportamento ou premiação pelo seu oposto. A racionalidade destas pessoas nos impulsiona a ver Deus como uma energia que criou o universo e mantem seu equilíbrio e, portanto, está em toda parte e, principalmente, dentro das pessoas, permitindo que elas existam, fazendo com que todos seus sistemas vitais se mantenham em homeostase e equilíbrio com o meio ambiente no qual vivem.
Ora, esta segunda visão do divino e do sagrado deve levar a entender as relações humanas de maneira racional e dependente do livre arbítrio. O determinismo que orienta as ações dos seres humanos e da existência dos entes inanimados seria devido ao arranjo de átomos, moléculas e outras partículas, justapostas pela energia (“Deus”?) que dá forma à natureza. É neste entendimento que podem se observar manifestações racionais do livre arbítrio, condicionando as relações dos seres humanos e dos entes inanimados entre si, de maneira equilibrada e harmônica. Assim, as expectativas dos seres humanos, poderão se manifestar de maneira plena e edificante, independentemente de sua submissão a um ser supremo. Novamente, é bom escutar Einstein quando diz que: “esta convicção profundamente emocional da presença de um poder de raciocínio superior, revelado na incompreensibilidade do universo, forma minha ideia de Deus.” E ele segue dizendo: “a experiência mais linda que podemos ter é do misterioso. É a emoção fundamental que repousa no berço da verdadeira arte e da verdadeira ciência. Aquele que não a conhece e não pode mais se admirar, ou maravilhar-se, está como morto e seus olhos estão obscurecidos. Foi a experiência do mistério – ainda que misturada com o medo– que engendrou a religião. O conhecimento da existência de algo que não podemos penetrar, nossas percepções da razão mais profunda e da mais radiante beleza, as quais apenas em suas formas mais primitivas são acessíveis às nossas mentes: este é o conhecimento e a emoção que constitui a verdadeira religiosidade. Neste sentido e somente neste sentido, sou um homem profundamente religioso”.
Com esta ideia de religiosidade não cabe esperar que as pessoas busquem emanações superiores regulando suas relações com outras pessoas, seja nas suas vidas privadas ou profissionais. Desaparecerá a dicotômica relação de força e submissão, prevalente quando se espera sempre a ação de uma “força hierárquica maior”. Na ausência de um ser humanizado e superior, não cabem expectativas de que as coisas aconteçam por determinações vindas de algum outro lugar que não seja o próprio centro das pessoas. Neste sentido, não cabe conceber uma sociedade em que os agentes exerçam força, uns sobre os outros, para que as coisas aconteçam. As coisas acontecerão pela justaposição de forças iguais ou construídas para a igualdade e contribuintes para o bem comum.
Nas organizações exitosas do século XXI se verá que esta justaposição de forças, prescindindo de forças superiores, levará para a consecução dos objetivos maiores delas de maneira igualitária, harmônica e satisfatória. A ideia de um poder superior, extrapolada para dentro das organizações pela suposta necessidade de um líder que as comande, cede lugar para uma cultura organizacional na qual o compromisso com o êxito, distribuído entre todos os grupos de interesse, se sobrepõe à necessidade de uma hierarquia de poder.
Neste contexto, a simples percepção de lideranças carismáticas ou messiânicas se torna caricaturesca e desprovida de sentido dentro das organizações, embora muitos ainda se empenhem em difundi-la, talvez, com objetivos de autopreservação. Numa sociedade que compreende a improbabilidade de um Deus humanizado, que tudo sabe e tudo pode, facilmente, se prescindirá desta figura dentro das organizações.
As organizações atuais mimetizam a estrutura hierarquizada que se baseia na ideia de um “Deus” humanizado que tudo pode, tudo sabe e do qual a organização depende como crentes submissos à ideia do todo poderoso.
Talvez seja chegada a hora do “novo normal”, dentro das organizações, para a transformação radical que elas necessitam se querem sobreviver contribuindo para a sustentabilidade da sociedade como um todo. Organizações que adotem novas formas de estrutura para suas relações de poder, dando maior protagonismo a todos os grupos de interesse, inclusive das pessoas que nelas trabalham, terão maiores chances de êxito integral. Este sucesso pressupõe a satisfação proporcional das pessoas que nelas trabalham; dos donos, acionistas, cotistas; dos fornecedores; dos clientes; e da sociedade como um todo que apoiará organizações que ajudem a circular a riqueza e contribuam para um progresso sustentável.
Por maior resistência que esta postura gere, “a imagem e semelhança de Deus” se tornou deletéria para as organizações modernas e que queiram contribuir para uma sociedade mais justa, humana, econômica e socialmente sustentável. A ideia de uma liderança compartilhada se impõe em contraposição à submissão a uma hierarquia onipotente, em cujo vértice se encontra a figura do pai, grande irmão que tudo sabe e tudo pode, diminuindo a autoridade e responsabilidade daqueles que lhe são subordinados. Trata-se de uma liderança sem seguidores. A simples ideia de subordinação exclui a maioria dos agentes, do main stream decisório das organizações eximindo-os de responsabilidade sobre seus resultados.
Recebido: 27 de julho de 2022. Aceito: 29 de julho de 2022
Correspondência: Haino Burmester. E-mail: cqh@apm.org.br
Conflito de Interesses: o autor declarara não haver conflito de interesses
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