Rev. Adm. Saúde (On-line), São Paulo, v. 22, n. 88: e325, jul. – set. 2022, Epub 26 set. 2022

http://dx.doi.org/10.23973/ras.88.325

 

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Análise das práticas de cuidado na descentralização do sistema de regulação ambulatorial no município do Rio de Janeiro

Analysis of care practices in the decentralization of the outpatient regulation system in the municipality of Rio de Janeiro

 

Barbara Bulhões1, Rodrigo Arcuri3, Hugo Bellas2, Paula de Castro Nunes2, Paulo Victor Rodrigues de Carvalho4, Alessandro Jatobá2

 

 

1. Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro RJ

2. Centro de Estudos Estratégicos Antônio Ivo de Carvalho da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro RJ

3. Universidade Federal Fluminense, Niterói RJ

4. Instituto de Engenharia Nuclear, Rio de Janeiro RJ

 

 

 

 

RESUMO

Introdução: O papel da atenção primária como ordenadora da relação entre os pontos da rede é fundamental para a organização de um sistema de saúde que responda às necessidades da população e gere resultados para a sociedade. Neste contexto, uma orientação do sistema de regulação de consultas e exames a partir da atenção primária é mecanismo imprescindível para alcançar bons resultados. Objetivos: O objetivo deste estudo é analisar as práticas de cuidado no sistema de regulação ambulatorial no município do Rio de Janeiro, que descentralizou as atividades de regulação do acesso para as unidades básicas de saúde. Métodos: Trata-se de um estudo de caso, possuindo característica exploratória e descritiva, de natureza qualitativa. O procedimento de coleta de dados foi, além de levantamento documental e revisão bibliográfica narrativa, entrevistas em profundidade realizadas durante o estudo de campo. Resultados: O processo de regulação descentralizada apresenta forte relação com a maneira como o município organiza e gerencia a atenção primária. No entanto, este apenas propicia um caminho-base, já que, em cada território aparecem diversas tramas a depender da formação do profissional médico, de sua relação com a unidade de saúde e o local de atuação. Conclusões: Recomenda-se então, fortalecer a descentralização da regulação, no sentido de que a proximidade com o usuário e o território são elementos que contribuem para aprimorar o acesso com maior resolutividade

Palavras-chave: Regulação e fiscalização em saúde; gestão em saúde; Política de Saúde; Acesso Universal aos Serviços de Saúde; sistemas de saúde

 

ABSTRACT

Introduction: The role of primary care as coordinator of the relationship between the components of the health network is essential for the organization of a responsive health system that meets the needs of the population and generates adequate results for the society. In this context, an orientation of the system for referring consultations and exams from primary care, is an essential mechanism to achieve quality results. Objectives: The objective of this study is to analyze care practices in the outpatient referral prioritization system in the city of Rio de Janeiro, which decentralized referral activities to primary care clinics. Methods: This is a case study, with an exploratory and descriptive design of qualitative nature. The data collection procedure were document surveys and narrative literature review, having as sources of information the interviews carried out during the field study and documental research. Results: The decentralized regulation process has a strong relationship with the way the municipality organizes and manages primary care. However, this only provides a basic path, since in each territory there are several plots depending on the training of the health workforce, their relationship with the primary care clinic and the workplace. Conclusions: It is therefore recommended to strengthen the decentralization of patient referral prioritization, as the proximity between patients and the health network becomes an element that collaborates to produce quality outcomes and greater resolution.

Keywords: Health Care Coordination and Monitoring; Health Management; Health Policy; Universal Access to Health Care Services; Health Systems

 

 

 

INTRODUÇÃO

Os sistemas de saúde devem responder aos anseios e necessidades da população, sendo universal, equânime, efetivo e eficiente. A organização dos sistemas de saúde deverá, portanto, encontrar modelos que viabilizem estes objetivos, modelos cujos princípios articulem claramente os resultados que querem garantir. Os sistemas de saúde com melhores desempenhos no mundo são organizados a partir da Atenção Primária à Saúde (APS), que segue alguns princípios essenciais: atenção no primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e a coordenação do cuidado. Além desses, há outros atributos derivados como a orientação familiar e comunitária e a competência cultural. Dessa forma, países que adotaram a APS como ordenadora do sistema apresentaram melhores e mais eficientes resultados. Embora todos os atributos da atenção primária sejam importantes, o atributo coordenação do cuidado é essencial para o funcionamento das Redes de Atenção à Saúde (RAS) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010; STARFIELD e SHI, 2002).

A operacionalização da RAS se dá a partir da articulação dos diferentes pontos, incluindo unidades básicas de saúde (UBS), os serviços de atenção secundária e terciária e os de apoio diagnóstico e terapêutico, de forma a contribuir para o alcance da integralidade da atenção à saúde. Há grande e crescente interesse em se estudar e comparar os diferentes modelos, principalmente em países europeus, que baseiam seus sistemas de saúde num forte componente de APS, embora haja diferenças na organização e na maturidade dos processos (SALTMAN, RICO e BOERMA, 2006).

Assim como o descrito na literatura, as equipes de APS são capazes de manejar 80% a 90% dos problemas mais prevalentes na população sob sua responsabilidade. Em contrapartida, a expansão da APS impulsiona a demanda à atenção secundária e terciária para dar conta dos casos em que são referenciados a partir da APS. A regulação em saúde surge como uma necessidade para organização e racionalização do acesso aos serviços de saúde secundários e terciários (SOUZA, 2003; NUNES, TRAD, et al., 2002).

Deste modo, a APS passa a assumir na prática a função de coordenação do cuidado, pois os médicos da APS passam a decidir o momento em que o paciente necessita acessar os demais níveis de atenção. Todos os exames complementares ou encaminhamentos de especialidades passam a ser inseridos no sistema de regulação a partir da APS. Contudo, estudos sobre a coordenação do cuidado ainda são escassos (VARGAS, MOGOLLÓN-PÉREZ, et al., 2016).

No Brasil, a APS teve sua expansão a partir de 1994 com a criação do Programa de Saúde da Família e, posteriormente, em 2006 com seu desenvolvimento para a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) a partir do modelo da Estratégia Saúde da Família (ESF). Com a expansão da cobertura de APS no Brasil, houve aumento significativo no acesso da população aos serviços de saúde. Neste sentido, a Política Nacional de Regulação foi instituída em 2008 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008) e visa normatizar as responsabilidades das esferas de governo e estruturas regulatórias.

A política nacional traz diretrizes gerais, permitindo que cada município ou consórcios regionais organizem o desenho da rede assistencial bem como os complexos regulatórios. Os complexos tendem a incluir três centrais de regulação: ambulatorial, internação hospitalar e urgência e emergência. Os sistemas fragmentados, de especialistas em pontos não coordenados, não são eficientes para o cuidado da maior parte dos problemas de saúde e não respondem adequadamente às necessidades dos pacientes que precisam de cuidados mais complexos. Assim, o papel da APS como ordenadora da relação entre os pontos da rede é fundamental para a organização de um sistema de saúde que responda às necessidades da população e gere resultados para a sociedade. Neste contexto, uma orientação do sistema de regulação de consultas e exames, a partir da APS, é mecanismo imprescindível para alcançar os resultados das RAS (ALMEIDA, GÉRVAS, et al., 2013).

Assim, a partir de 2009, o Município do Rio de Janeiro (MRJ), que se caracterizava por baixa cobertura de APS, iniciou uma reforma do sistema de saúde com base nos cuidados em atenção primária, elevando a cobertura de 7% em 2009 para 70% em 2016 (SORANZ, 2017). Segundo dados do e-Gestor atenção básica, a cobertura da Estratégia de saúde da Família (ESF) em dezembro de 2016 chegava a 59,47% e da Atenção Básica a 68,62%, já em dezembro de 2020 a cobertura da ESF chegou a 39,60% da população e da Atenção Básica a 45,98%. Tal discrepância pode ser associada a mudança de política sobre a atenção primaria a saúde que ocorreu entre a mudanças de governos no município, em certa medida relacionada também a descentralização da regulação ambulatorial. A Regulação Ambulatorial no Município do Rio de Janeiro até 2009, segundo Pinto et al (2017) ocorria com o usuário munido do formulário de encaminhamento preenchido por seu médico e responsável por encontrar a vaga para o procedimento desejado, gerando dificuldades de agendamento dos procedimentos para o usuário. A partir da reforma organizacional da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), foi possível a utilização do Sistema Nacional de Regulação do Ministério da Saúde para um número maior de unidades. No entanto, problemas relacionados ao agendamento automático afetaram o desempenho em avaliar o tempo de espera e a distância da residência (PINTO, SORANZ, et al., 2017).

O objetivo deste estudo é analisar as práticas de cuidado na descentralização do sistema de regulação ambulatorial no município do Rio de Janeiro.

 

MÉTODOS

Trata-se de um estudo de caso, possuindo característica exploratória e descritiva, de natureza qualitativa. O procedimento de coleta de dados adotado segue o estudo de caso, além de levantamento documental e revisão bibliográfica narrativa, tendo como fontes de informação as entrevistas realizadas durante o estudo de campo e a pesquisa documental.

Em sua primeira etapa, referiu-se à necessidade de compreensão sobre como a regulação ambulatorial está institucionalmente constituída no SUS, mais especificamente no Município do Rio de Janeiro. Para tanto, foi realizado uma análise documental calcada nos documentos oficiais que regem a regulação. No levantamento documental sobre a regulação ambulatorial, estabeleceu-se um conjunto de documentos formulados pelo Ministério da Saúde, Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro - Comissão Intergestores Bipartite (CIB) e pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, disponíveis eletronicamente nas páginas oficiais destes órgãos, de diversas tipologias, tais como: políticas, deliberações, manuais, protocolos, folders e guias. O período destas publicações foi compreendido entre 2008 e 2016.

O estudo envolveu ainda entrevistas semiestruturadas, presenciais com todos os médicos reguladores de 10 centros municipais de saúde, localizados em cada área programática de saúde do Município do Rio de Janeiro. A partir desta amostra, o grupo de pesquisa do estudo definiu as unidades com maior viabilidade para iniciar a construção de uma abordagem piloto da pesquisa. Três unidades fizerem parte da abordagem piloto para validação do questionário semiestruturado de entrevista. Havendo poucas alterações no mesmo, o material foi consolidado e agregado aos resultados da pesquisa. Os dados coletados foram codificados utilizando ferramentas analíticas qualitativas (STRAUSS e CORBIN, 1998; MINAYO, 2014).

Vale ainda ressaltar que o projeto do estudo foi apreciado e aprovado pelo comitê de ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca.

 

Coleta de Dados

Primeiramente, para a abordagem de entrada no campo teve como método a apresentação dos entrevistadores e da pesquisa nas unidades básicas de saúde selecionadas para entrevista piloto, e o posterior contato por meio telefônico com os médicos reguladores para realização das entrevistas. Desta forma, um entrevistado indicava outros atores para participar do estudo, utilizando o tipo de amostra não probabilística que utiliza cadeias de referências, denominada “bola de neve”, útil para estudar grupos de difícil acesso. Configura-se como um processo de permanente coleta de informações, que se beneficia das redes sociais dos entrevistados identificados, que amplia cada vez mais os contatos potenciais, podendo ter o seu processo finalizado a partir do critério de ponto de saturação (VINUTO, 2016).

Para a entrevista, os profissionais que aceitaram participar expressaram sua concordância por meio de termo de consentimento livre e esclarecido, seguindo as recomendações da Resolução nº 506/2016 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2016).

As entrevistas foram realizadas com roteiro semiestruturado validado pelo grupo de pesquisa do estudo e em entrevista piloto, sem causar danos ou constrangimento aos mesmos. Ao menos dois pesquisadores participam de cada entrevista, e utilizaram como instrumentos caderno de campo e gravador. Para início da codificação e sistematização dos dados, ao sair de cada unidade os pesquisadores realizaram uma síntese dos principais achados de cada entrevista.

 

Análise dos dados

Para a codificação dos dados, análise e modelagem da regulação como realizada optou-se por desenvolver mapas conceituais das entrevistas. A análise do material e desenvolvimento da discussão ocorreu em reuniões do grupo de pesquisa composto por profissionais das áreas da saúde e da engenharia.

No intuito de facilitar a assimilação e o compartilhamento dos resultados, foi utilizada a metodologia de mapeamento conceitual desenvolvida por Novak. Essa metodologia refere-se à representação do conhecimento por meio de estruturas gráficas onde os conceitos são representados por links e deste conjunto obtém-se proposições. Do agrupamento destes conceitos obtém-se um esquema visual onde os nós representam os conceitos e seus arcos (links) simbolizam as ligações entre os diversos conceitos. Essa técnica teve seu embasamento na teoria de aprendizagem cognitiva de Ausubel, que destacava a aprendizagem decorrente da assimilação de novos conceitos e proposições por meio de estruturas cognitivas pré-existentes, assim como na teoria construtivista de Piaget, na qual o indivíduo constrói seu conhecimento e significados a partir de sua predisposição para realizar as associações (NOVAK, 1998).

O mapa conceitual deste estudo foi desenvolvido em dois níveis: 1º - mapa geral do processo prescrito de regulação e 2º - mapas das entrevistas efetuadas pelo estudo. O mapa de 1º nível refletiu a ideia de como o processo de regulação foi idealizado na sua concepção, servindo de modelo comparativo para verificação de adequação aos padrões de funcionamento. Os mapas de 2º nível responderam às seguintes questões foco: “Como é a prática da regulação ambulatorial na sua unidade?”; “Como você avalia a descentralização da regulação no MRJ?”.

 

Limitações

Os resultados do estudo estão limitados à representatividade da abordagem qualitativa escolhida, cuja amostra apresentou sinais de saturação com o 14º médico regulador entrevistado. Ressalta-se ainda que, no período de realização das entrevistas houve uma greve dos médicos da atenção primária do município, o que tornou o quadro ainda mais complexo, além do período do estudo compreender a transição da gestão municipal.

Naturalmente, a validade dos resultados de qualquer estudo descritivo é função, dentre outros fatores, da representatividade da amostra de elementos. Assim, o dimensionamento da amostra de Unidades Básicas de Saúde (UBS) visitadas e a observância quanto à distribuição pelas várias áreas programáticas (AP) do município permite uma representatividade por mapeamento de elementos do sistema, mas não por prevalência destes elementos no mesmo.

Sendo assim, a amostra selecionada não permite realizar inferências sobre a prevalência de certas características da atividade de regulação encontram-se na população de agentes reguladores no MRJ. Ainda assim, permite o mapeamento de grande parte dos elementos-chave do funcionamento real do sistema. Adicionalmente, parece razoável admitir que estes elementos possuem relevância mesmo no caso de ocorrência singular dos mesmos, já que cada UBS é responsável por regular o encaminhamento de algumas dezenas de milhares de pessoas, em média.

Vale ressaltar que a descrição sobre o processo de regulação na atenção básica está majoritariamente relacionada ao relato dos médicos reguladores nas entrevistas realizadas, uma vez que a observação direta da atividade de regulação e do uso das ferramentas de TI (sobretudo do SISREG) ocorreu de forma pontual. Desta forma, afirma-se aqui a importância de acompanhar este processo de trabalho e da impressão de outros atores que fazem parte do mesmo, como os ACS e usuários, assim como o processo de trabalho dos médicos prestadores de procedimentos especializados.

 

RESULTADOS

 

Descrição das atividades realizadas no fluxo regulatório no contexto da prática da regulação descentralizada no município do Rio de Janeiro

Entre os principais achados do estudo, destaca-se o entendimento geral da dinâmica da regulação ambulatorial no município do Rio de Janeiro que apresenta a unidade básica de saúde como porta de entrada do usuário que busca atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), vide figura 1 (abaixo). Neste contexto, o usuário é acolhido na UBS de referência do seu território, a partir da localização da sua moradia, e é referenciado para a sua equipe de saúde da família, marcando uma consulta com o Agente Comunitário de Saúde (ACS) para o médico da sua equipe. Nesta consulta, o médico avalia o caso e, havendo necessidade, faz a solicitação de encaminhamento para procedimento ambulatorial especializado utilizando o SISREG.

 

 

Interface gráfica do usuário

Descrição gerada automaticamente

Figura 1. Contexto da prática e mapa do processo de ambulatorial no município do Rio de Janeiro pela perspectiva do médico regulador da UBS.

 

O SISREG concentra as solicitações, mas a tomada de decisão sobre atender, negar ou deixar pendente a solicitação vai depender do procedimento desejado. No caso de exames de imagem como radiografias e tomografias, a regulação é realizada pela central de regulação da secretaria municipal de saúde. Já as solicitações de procedimentos de saúde mental são encaminhadas para o Núcleo Interno de Regulação (NIR) da coordenação de área programática (CAP) de saúde do município onde a Unidade Básica de Saúde (UBS) está localizada, para avaliação da coordenação de saúde mental da CAP.

Os casos de saúde mental apoiam-se no matriciamento (matriciamento ou apoio matricial é um novo modo de produzir saúde em que duas ou mais equipes, num processo de construção compartilhada criam uma proposta de intervenção pedagógico-terapêutica) dos casos com o Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) para solicitar os procedimentos de saúde mental a CAP. Por outro lado, pode haver distanciamento da proposta de descentralização das vagas na discussão dos casos de saúde mental por apenas a coordenadoria de saúde mental da CAP fazer a regulação destas solicitações de encaminhamento.

Sobre a atribuição de regulador, esta envolve avaliar e tomar a decisão sobre a solicitação de encaminhamento aos procedimentos realizados pelos médicos solicitantes, oportunamente no momento da consulta, devendo o regulador negar, devolver, agendar ou deixar a solicitação como pendente. Ao negar a solicitação o regulador aponta que o pedido descrito não está de acordo, apresentando divergência com as exigências para a vaga solicitada. Ao devolver, o regulador indica que existe algo que não ficou claro na solicitação e precisa de atenção. Pode ser algum erro de digitação, de abordagem clínica entre outros que apontem a necessidade do procedimento, mas que impede que ele seja agendado.

O agendamento da solicitação de encaminhamento ocorre quando a vaga para o procedimento está disponível. Assim, o regulador avalia o critério de prioridade do caso e agenda a consulta. Em algumas unidades o critério de prioridade é revisado diariamente no diálogo entre o médico regulador e o médico solicitante. Esta relação apresenta muitas preocupações entre os médicos reguladores e merece aprofundamento em estudos futuros.

Ao agendar, o médico regulador, que também pode estar no momento da consulta, escolhe a vaga que lhe parece mais adequada clinicamente e socialmente, levando em consideração a distância do local de moradia do usuário, o custo de deslocamento e o tempo de espera até a data do procedimento. Esta combinação de fatores, quando explicitada durante a consulta, aumenta a chance de realização do procedimento.

Contudo, quando a vaga não está disponível a opção que o médico regulador tem é deixar pendente a solicitação e aguardar o aparecer a vaga no sistema para agendar. Neste caso o agendamento é realizado sem a presença do usuário e a negociação desta equação acontece previamente na consulta sendo relatada no sistema. O SISREG apresenta alguns campos para relatar as preferências dos usuários, mas nem todos são de conhecimento dos médicos reguladores e em algumas unidades a forma como estas informações aparecem são pactuadas entre os profissionais.

O protocolo ao regulador (RIO DE JANEIRO, 2016) prevê a devolução para reavaliação dos médicos reguladores dos casos pendentes que aguardam vaga a mais de seis meses, buscando otimizar a fila de espera e diminuir o absenteísmo. Nestas solicitações, o usuário pode não necessitar mais do procedimento por melhoria ou piora do quadro clínico, como pode ter realizado o mesmo por outros meios. Esta devolução, que pode ocorrer pela central de regulação ou pelos NIR das coordenadorias de áreas programáticas também pode ser chamado de “mutirão de regulação” pelos médicos reguladores das UBS. O volume de solicitações a serem analisadas pode ultrapassar 1000 solicitações por unidade, dependendo do processo de trabalho dos solicitantes e reguladores instituído na unidade.

Com a solicitação agendada, o usuário recebe uma mensagem de texto da Short Message Service (SMS) informando que o procedimento foi agendado. O encaminhamento e a solicitação são impressos pelos médicos reguladores da unidade e entregue ao responsável pela agenda da equipe, pode ser o enfermeiro, médico residente ou médico responsável pela equipe. Estes grampeiam os encaminhamentos, tendo em vista preservar o sigilo do usuário, e distribuem para os ACS da microárea onde está localizada a residência do usuário.

Na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, os usuários recebem um aviso da unidade de atenção primária sobre a confirmação e o agendamento de sua consulta. Essa responsabilização pelo acompanhamento é facilitada pelo envio de uma SMS a cada agendamento realizado no SISREG e pela ferramenta local “Onde ser atendido”, desenvolvida para a população da cidade encontrar sua unidade de atenção primária de referência no município (RIO DE JANEIRO, 2012; PINTO, SORANZ, et al., 2017).

Os ACS realizam algumas tentativas de entrega do encaminhamento ao usuário, caso não seja possível encontrá-lo, os documentos retornam à unidade. As unidades apresentam diferentes estratégias para encontrar o usuário e/ou informá-lo que o procedimento foi agendado. Dentre elas, telefonar faltando quinze dias a uma semana do dia agendado ou solicitar a parentes e conhecidos que peçam para o usuário ir até a UBS.

Com a solicitação e o encaminhamento em mãos, o usuário deve prestar atenção a descrição da documentação necessária para realizar o procedimento descrito na solicitação. Munido desta documentação o usuário é atendido na unidade do procedimento especializado. Ao realizá-lo, o médico responsável deve preencher a contrarreferência localizada na folha de encaminhamento, o que na maioria dos casos não ocorre.

 

Elementos que contribuem para a organização da prática do processo de trabalho do regulador nas unidades básicas de saúde

 

Gestão da lista de solicitações da unidade:

Processo realizado pelo regulador para auxiliar a tomada de decisão sobre as solicitações que consiste em discussões de casos com solicitantes para melhor decisão, revisão de critério de prioridade, agendamento, devolução ou cancelamento de solicitações pendentes. Verificou-se que pode ser realizado por um ou vários médicos reguladores da mesma unidade básica de saúde.

 

Discussão e análise de casos-sentinela com solicitantes:

Processo de educação continuada utilizado para capacitação dos médicos solicitantes e reguladores e uniformidade quanto aos critérios de prioridade e melhoria das justificativas de solicitações de encaminhamento. Destaca-se aqui a relação entre preceptor/residente e médico regulador/ médico solicitante, fator que pode ser facilitador desta relação de educação continuada.

 

Checagem de abertura de vagas e agendamentos:

Processo de monitoramento do SISREG para verificar abertura de vagas dos encaminhamentos pendentes. Pode ocorrer diariamente, utilizando de 30min a 1h e 30min por dia. Utiliza diversas ferramentas, incluindo grupos de relacionamento virtual no celular que alertam sobre abertura de vagas. Em algumas unidades existe revezamento desta tarefa ao longo da semana e dos turnos quando há mais de um médico regulador.

 

Contato com o Núcleo Interno de Regulação (NIR) da Coordenação de Área Programática, ou a Central de regulação:

Processo que ocorre para suporte em casos desafiadores, como casos de urgência/gravidade em especialidades com gargalos de vagas, agendamentos inviabilizados por restrições de atendimento por parte dos ofertantes e/ou dificuldade na definição do tipo de procedimento especializado registrado no SISREG a ser agendado.

A qualidade e abrangência do suporte proporcionado variam de acordo com sua área programática de abrangência, podendo ter uma interação semanal, como até não haver nenhuma relação entre o regulador da UBS e do NIR da CAP. Em outros casos o contato se faz diretamente com a central de regulação por meio de e-mail ou com o prestador, dependendo do tempo de trabalho do regulador na rede do município e de sua forma de atuação no território.

Figura SEQ Figura \* ARABIC 3: Aproximação com o contexto da prática da regulação no Município do Rio de Janeiro, a partir dos resultados do estudo

Divisão de tarefas relacionadas a regulação nas unidades de atenção primária a saúde

Estas estão relacionadas à gestão interna da unidade, à divisão de tarefas sobre a tomada de decisão das solicitações, à divisão de tarefas sobre os agendamentos e os estratagemas da regulação. No caso, colabora com os principais conceitos referentes ao processo interno de regulação com seus fluxos prescritos e suas adequações à dinâmica e perfil da unidade, assim como do território e seus usuários.

Tendo em vista a complexidade e capilaridade da regulação na unidade básica de saúde, os médicos reguladores do município colaboram que existe a necessidade de dividir tais tarefas internas, seja entre reguladores, administrativo e/ou equipes da unidade. Relatam o protagonismo dos médicos reguladores, principalmente do médico responsável técnico da unidade em gerir ou apoiar a gerência da unidade sobre este fluxo regulador. Enquanto em algumas unidades percebe-se uma centralização maior deste ator no processo interno de regulação, em outras pode haver uma interação maior com as equipes e até a participação de enfermeiros solicitantes. Em algumas unidades o apoio de profissionais administrativos na organização das filas de solicitações e devolvidos é fundamental para organização do trabalho do regulador. Em outras unidades, tais profissionais não têm muita relação com o processo de regulação. Assim como ocorre com os Agentes Comunitários de Saúde, que em algumas unidades se incorporam à dinâmica dos reguladores e apoiam estratégias de diminuição do absenteísmo e em outras unidades não são relatados na descrição do processo de regulação.

As divisões de tarefas apontam como ocorre a gestão interna da regulação na unidade, quais os profissionais que participam, a dinâmica de produção dos documentos (como as solicitações e guias de encaminhamento) e das informações referentes nestas. Nesta gestão da regulação na unidade o regulador apresenta grande influência na condução, elaboração e manutenção desta. Este dita o ritmo de trabalho, chegando a formular fluxos e atividades.

Quando o responsável técnico também é regulador da unidade, apresenta mais autonomia para a definição e gestão destes fluxos internos. Esta gestão fica baseada nas informações e protocolos apresentados nos documentos e direcionamentos da secretaria municipal de saúde, assim como da política nacional de regulação. Contudo, o desenvolvimento de tais protocolos e diretrizes na unidade prescinde uma práxis com a realidade, destas surgem as adaptações à realidade e inovações apresentadas aqui como atividade da regulação.

Esta atividade nas unidades tem como base de seu fluxo a tomada de decisão do regulador, como prescrito nos documentos da secretaria municipal de saúde do MRJ referentes a regulação. Com isto, a tomada de decisão do regulador da unidade contribuir para a divisão de tarefas relacionadas a regulação nas unidades de atenção primária a saúde. Segue as principais atribuições deste:

  • Organizar o fluxo das solicitações devolvidas e pendentes;
  • Administrar o agendamento de procedimento, principalmente referentes aos gargalos de vagas, aos casos complexos que precisam de auxílio do NIR e da Central de Regulação e a comunicação sobre os agendamentos realizados e cancelados.
  • Organizar a dinâmica interna de autorizações das solicitações, podendo haver escala de reguladores para a atividade, com organização de códigos internos sobre quem realiza a verificação de solicitações.
    • Esta atividade varia bastante entre as unidades, sendo capaz de ser realizada por um único regulador ou cada dia da semana por um regulador diferente. Esta opção não depende somente da quantidade de equipes na unidade, mas sim da capacidade de comunicação interna para realizar análises sobre os critérios de prioridade e do entendimento do que seria a organização mais adequada pelo médico regulador responsável técnico da unidade.
  • Organizar a lista de pendentes, devolvidos e negados.
    • Isto pode ocorrer com auxílio e criação de tabelas pelos reguladores para não “esquecer” as solicitações que não foram agendadas, também pode ter o auxílio do administrativo da unidade e de residentes.
  • Comunicação entre os reguladores sobre os critérios de prioridade dos casos com solicitações de procedimentos.
    • Pode ocorrer ou não com apoio de uma rede de reguladores da área programática onde a unidade está circunscrita, do NIR e da Central de Regulação. Uma conduta direta entre o médico regulador ou solicitante e o prestador da vaga também pode ser realizada para diálogo sobre o caso e contato com o prestador. Em uma entrevista foi relatada uma reunião entre todos os RTs para trocar informações sobre o processo de regulação e torná-los multiplicadores desta política.
  • Reguladores\preceptores fazem escala semanal para realizar regulação da unidade, contudo o médico Responsável Técnico (RT) apresenta mais responsabilidade.
    • O processo perpassa a verificação diária de vagas para todas as solicitações pendentes da unidade, o RT memoriza os casos com solicitações pendentes. Para lidar com as solicitações pendentes, o RT precisa abrir no SISREG uma solicitação de cada procedimento para saber se surgiu a vaga. Assim o RT também regula os casos mais desafiadores, aqueles que apresentam escassez de vagas e/ou maior gravidade. É também papel deste atuar como fiscal da qualidade das solicitações promovendo educação continuada na UBS.
  • Escala para a regulação entre os 5 preceptores\ reguladores da unidade, que implica na organização e comunicação dos reguladores da unidade para analisar os pendentes, que inclui deixar a pendência analisada esperando vaga.
    • Em alguns casos a análise do regulador é descrita como “Procedimento avaliado e aprovado pela regulação e aguardando vaga”. Inclui, por exemplo, verificar o caso descrito com vaga solicitada e se o endereço do usuário está em área de abrangência descrita.
  • Cada equipe regula as solicitações de seus usuários, o que minimiza a discussão de caso entre o regulador e o solicitante e faz com que a opção “negar solicitação” não seja utilizada na prática de regulação.
    • Os casos extraordinários são discutidos nas reuniões de equipe, utilizando as contrarreferências para discutir inserção e regulação de procedimentos. Quando há um procedimento com pouca oferta de vagas, são discutidas possibilidades de encaminhamento nas reuniões de equipe, e os usuários são novamente encaminhados, como, por exemplo, o caso de um procedimento de ultrassonografia transvaginal para ultrassonografia pélvica. Agendamento do procedimento ocorre no momento da consulta e reguladores fazem escala de segunda a sexta para atuar como reguladores da unidade.
  • Preceptor/ Regulador regula principalmente sua equipe e RT regula toda unidade básica de saúde.
    • O RT possui funções exclusivas que incluem negação de solicitações e promoção de educação continuada junto aos respectivos solicitantes, assim como devolução de solicitações e sugestão de encaminhamentos paras elas.
  • O ambiente de entrada no sistema também define as necessidades de organização dos reguladores para suas atividades.
    • Podendo ocorrer que em algumas unidades Administrativos possuem senha de solicitante. Em outra unidade com 7 equipes e 4 reguladores preceptores (sendo 1 RT) o trabalho é conjunto, organizado por escala para a entrada no sistema de regulação. Os reguladores, no caso de outra unidade, vão para a mesma sala no mesmo horário (às 8h) para entrar no SISREG, o que implica na necessidade de maior diálogo entre reguladores.

 

Organização do fluxo de regulação da UBS com a RAS

A identificação das atividades da regulação e sua variabilidade nas diversas unidades básicas de saúde permite verificar as diferentes maneiras de estabelecer a política de regulação conforme definido no manual do regulador, no dia a dia do processo de trabalho do médico regulador nas unidades básicas de saúde. Desta forma, vemos a pluralidade de atividades que buscam seguir o eixo prescrito para o processo de regulação:

  • Organizar e alimentar listas e planilhas referentes a linha de cuidado do usuário, solicitadas pelas áreas de coordenação específicas da CAP que realiza vigilância dos usuários;
  • Quando a contrarreferência não é preenchida por ofertante é necessário coletar a narrativa do atendimento especializado com o usuário, caso não seja possível pode ser necessário o retorno do usuário ao médico especialista com “carta do regulador” para realizar comunicação;
  • Apoio e discussão de casos com médicos externos (ex-trabalhadores da unidade ou médicos de referência dos preceptores nos programas de residência) a unidade para auxiliar consulta com especialista;
  • Apoio de reguladores a outra UBS após “zerar” fila de devolvidos de unidade onde está destinado (quando existe colaboração entre reguladores das UBS);
  • Evitar perda de solicitação no chamado “buraco negro” ou “limbo” que ocorre quando a solicitação sai do pedido de vaga e só vai ser resgatada se houver uma busca ativa do agendamento;
  • Apoio administrativo para informar aos usuários sobre situação de solicitação no SISREG, incluindo usuário que está agendado e usuário que não está a aguardando vaga, informando inclusive sobre a ida do usuário na unidade pedindo informações aos envolvidos;
  • Receber reclamação de usuário na UBS sobre tempo de demora para realizar procedimento, contribuindo para identificar a perda de monitoramento do encaminhamento do usuário. Esta propicia verificar o cartão SUS do usuário e identificar o problema, informando ao usuário a situação do encaminhamento.

 

Obstáculos à prática da regulação descentralizada

Os obstáculos à prática da regulação estão relacionados ao planejamento e gestão de vagas, o desenho atual da organização do trabalho e do processo de regulação, a formação de médicos de equipe e de médicos reguladores da APS, a atuação de unidades ofertantes da Rede de Atenção Especializada, e finalmente os sistemas de TI empregados (SISREG e o SER).

 

Obstáculos gerados no planejamento e gestão de vagas

Medidas que colaborem no sentido de aumentar a oferta absoluta de vagas ao município para certos procedimentos em especialidades é uma das principais medidas para mitigar determinados problemas relacionados a gestão de vagas. No contexto do Rio de Janeiro, quando a regulação estava descentralizada e levando em consideração o perfil epidemiológico do período, especialidades como oftalmologia, ultrassonografia de mama, e oncologia, e até mesmo certos procedimentos - tais como fisioterapia em determinadas regiões destacaram-se por pouca oferta de acesso aos usuários do SUS.

A impossibilidade de coordenar adequadamente o cuidado de usuários nestas especialidades ocorre em virtude de os tempos de espera máximos preconizados pelo Protocolo ao Regulador ser em muitos casos extrapolados em meses. Isto ocorre em razão do médico regulador RT acumular diversas atribuições e as vagas mais escassas se esgotaram em poucos minutos. Os agendamentos de solicitações para estas acabam possuindo um caráter mais circunstancial que os demais, causando uma percepção de frustração aos reguladores. Destaca-se que a abertura das vagas ocorre em qualquer horário entre as 08h e as 20h nos dias úteis, no entanto a pouca oferta faz as primeiras vagas serem completadas nas primeiras horas da manhã ou quando se tem conhecimento de novas vagas disponíveis no sistema. Para mitigar estes gargalos de vagas são utilizados estratagemas como:

       Discussão direta com especialistas focais externos ao sistema de regulação, mas integrantes da rede de contatos do solicitante ou regulador da unidade, de maneira a substituir uma necessidade mais imediata de consulta ambulatorial por meio do processo de regulação;

       Estudo de aspectos da clínica médica destas especialidades pelos reguladores da unidade de maneira a capacitar os médicos de equipe e aumentar a resolutividade da APS, encaminhando à Atenção Especializada apenas os casos de grande complexidade;

       Negociação ou tentativa de encaminhamento de usuários a ofertantes de procedimentos especializados externos ao sistema de regulação (sem oferta de vagas ou contrato com a SMS), como algumas clínicas privadas, ou outras entidades de articulação, como associações de moradores.

Os grupos de WhatsApp dos reguladores, funcionam como elementos de suporte ao agendamento destes procedimentos, principalmente ao alertar quando uma vaga de pouca oferta está disponível para agendamento. Também houve relato da importância do suporte do NIR para solução de casos especialmente graves no âmbito destas especialidades.

 

Obstáculos gerados na APS e na Atenção Especializada

  • A importância de sincronia entre as ações da APS e da Atenção Especializada para o bom funcionamento da regulação é ponto fundamental para o boom funcionamento da descentralização da regulação. Os médicos reguladores encaram como essencial a conscientização dos agentes do sistema quanto ao papel da APS como coordenadora do cuidado, sendo o aprimoramento das ações de cada agente consequência natural deste alinhamento. De forma geral, a percepção de que a comunicação e interação entre estes níveis de atenção à saúde possuem importantes entraves que devem superados.

Em primeiro lugar está a presença de restrições de atendimento atreladas às vagas ofertadas no SISREG, tidas como muitas vezes arbitrárias pelos reguladores da APS. Estas são sobretudo quanto a grupos etários e quadros clínicos no atendimento pelos especialistas focais.

O segundo ponto, muito recorrente e considerado de extrema relevância para a prática da regulação é o subpreenchimento da contrarreferência pelos especialistas focais. O protocolo de referência & contrarreferência é o único meio prescrito para contato direto entre a APS (médico de equipe e médico regulador) e o especialista focal consultado em um dado caso.

Nestes casos, a continuação do cuidado fica comprometida, por depender da lembrança do usuário sobre o procedimento realizado. Entre os fatores que pesam neste comprometimento estão a dificuldade de ler e o constrangimento de usuários em fazer perguntas aos especialistas focais, além da pouca familiaridade com os termos técnicos utilizados nas consultas e o próprio esquecimento de parte do que se passou devido ao intervalo às vezes grande até o retorno à unidade básica.

Por conseguinte, pode haver confusão na interpretação dos resultados do tratamento e mesmo a necessidade de reencaminhamento à Atenção Especializada, de acordo com alguns entrevistados. De forma geral, nota-se a potencial sobrecarga desnecessária do sistema, além de alongamento do tempo de tratamento e comprometimento da resolutividade no cuidado.

Tais questões realçam a importância da formação em medicina da família e comunidade para os médicos solicitantes e reguladores da APS como forma de alavancar a efetividade do processo de regulação. A ausência desta formação está intimamente conectada à baixa resolutividade no atendimento e a baixa qualificação dos encaminhamentos, o que eleva o número de solicitações desnecessárias e também o número de devoluções, potencialmente atrasando o tempo de processamento de solicitações e em última análise o cuidado aos usuários.

 

DISCUSSÃO

A metodologia aplicada abordou aspectos relacionados ao cotidiano da atuação da regulação ambulatorial na unidade de saúde, especialmente aqueles relacionados às inovações e adaptações elaboradas (a partir ou na) da prática dos médicos reguladores.

De acordo com as entrevistas, o médico regulador atua em constante sensação de alerta que prescinde da tomada de decisão sobre o procedimento especializado que o usuário necessita. A aproximação desta tomada de decisão com o território e suas idiossincrasias parece possibilitar o compartilhamento da decisão sobre a melhor vaga e o melhor caminho para realização do procedimento com o usuário e seu médico de família. Desta maneira, pode contribuir para maior permeabilidade aos aspectos sociais e das especificidades dos usuários.

Aparentemente, esta proximidade com os casos no momento da decisão propicia maior diálogo entre o médico solicitante e o médico regulador da unidade, fornecendo mais elementos para a decisão sobre o procedimento especializado a ser prestado e a coordenação do cuidado.

Outro aspecto que vale observação sobre esta proximidade da tomada de decisão com a realidade da UBS e do usuário assistido é se esta contribui para a utilização dos critérios de prioridade de maneira mais homogênea entre cada UBS.

Há diversidade nas unidades sobre o desempenho na gestão desta regulação. Existem unidades onde apenas o médico responsável técnico tem atribuições de regulador para toda unidade (o que pode contribuir para esta homogeneidade dos critérios de prioridade), como também unidades onde médicos reguladores fazem escala para regular em diferentes dias da semana, ou ainda onde médicos reguladores tenham especificadas as equipes e médicos solicitantes que irão regular as solicitações. Esta diversidade da gestão da regulação nas unidades necessita de estudos mais aprofundados para gerar inferências sobre seus impactos nos critérios de prioridade.

Estudos futuros, tanto da abordagem desta tomada de decisão do médico regulador e sua relação com a unidade de saúde e seus usuários, quanto da permeabilidade dos aspectos territoriais e sociais na resolutividade e acesso dos usuários aos serviços, são oportunos. Estes contribuirão para destacar seus efeitos no processo de trabalho, assim como na opinião e atuação de outros atores envolvidos no processo, como os usuários.

Em particular, a ausência de período formalizado para regular, combinada com a imprevisibilidade na abertura de vagas e o curto tempo disponível para agendar vagas de procedimentos com demanda reprimida, exerce grande influência no trabalho dos médicos reguladores. Pode-se argumentar que o desenho da organização do trabalho estimula um estado de alerta contínuo do regulador (e principalmente do RT) que extrapola o período formal da jornada diária na unidade, em que este é levado a buscar uma maximização da disponibilidade para regular caso surjam vagas “preciosas” para as solicitações sob sua “guarda”. Desta maneira, torna-se valioso para o regulador a utilização dos grupos de WhatsApp de reguladores de sua unidade e de sua AP, como evidenciado nos mapas conceituais.

Entretanto, as grandes diferenças operacionais de cada UBS moldam a realidade de trabalho do regulador tanto quanto os elementos até aqui apresentados. Em face a isto, é irremediável o fato de que a resolutividade dos agendamentos se torna dependente não apenas da dedicação, mas também da disponibilidade alcançada por cada médico regulador. Este aspecto foi comentado nas entrevistas, encarado como um obstáculo para tornar verdadeiramente equânime o sistema de regulação ambulatorial do município.

Tendo em vista a APS como coordenadora do cuidado em saúde e porta de entrada do Sistema Único de Saúde, mostra-se interessante avaliar o impacto desta descentralização no protagonismo da atenção primária na atenção à saúde. O presente estudo possibilitou verificar que estas atribuições ao médico da APS também descentraliza a alocação dos recursos do sistema de saúde.

Dessa forma, este médico pode influenciar na demanda dos procedimentos especializados, como ao aprovar apenas solicitações que dialoguem com o papel de coordenador do cuidado do médico de família e comunidade e o entendimento de que a atenção básica deve ser resolutiva na maioria dos casos.

Em termos gerais, segundo Pinto et al. (2017), em 2015 do total de 186.326 horas contratadas, esperava-se um total de 372.652 consultas e apenas 45.980 foram reguladas. Nesse período, a produção ambulatorial semanal estimada foi de 437.291 procedimentos, exames e consultas. Há grandes diferenças entre as esferas administrativas, sendo a municipal a maior provedora: responsável por 63,3% da oferta de vagas no SISREG, sendo 38,4% das unidades municipais próprias, 24,9% das unidades conveniadas ao SUS, 9,0% a estadual, e a federal a menor, 2,3%

Ainda segundo Pinto et al. (2017), de acordo com dados do CNES e SISREG municipal, a seleção de algumas especialidades e procedimentos evidência grandes disparidades entre a proporção de consultas reguladas pela SMS-RJ em relação ao total de consultas esperadas, oscilando entre 5,7% para consultas de fisioterapia, 8,1% para consulta de ginecologia – cirurgia de baixo e médio risco, a 48,3% para as consultas em oftalmologia geral.

 

CONCLUSÃO

O processo de regulação descentralizada apresenta forte relação com a maneira como o município organiza e gerencia a atenção primária. No entanto, este apenas propicia um caminho base, já que, em cada território aparecem diversas tramas a depender da formação do profissional médico, de sua relação com a UBS e o local de atuação.

 A Reforma da Atenção Primária em Saúde no MRJ e a descentralização da regulação na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro cria novos atores no desenvolvimento da política de regulação, aproxima o tema e a tomada de decisão da regulação dos territórios de saúde e traz outras dinâmicas que interagem buscando fortalecer a coordenação do cuidado.

O tema da regulação, como um elemento estratégico da coordenação do cuidado, diante de sua magnitude, impacto no sistema de saúde e na vida da população brasileira, faria bom uso de maior investimento da academia e das esferas de gestão.

As recomendações expressas aqui seguem o propósito de destacar a uniformidade na avaliação positiva do processo de regulação encontrada no caso da regulação descentralizada no município do Rio de Janeiro, elencando elementos que devem ser priorizados na busca da qualidade.

Recomenda-se então, fortalecer a descentralização da regulação, no sentido de que a proximidade com o usuário e o território vem a ser um elemento que de fato colabora para produzir acessos aos serviços no âmbito da RAS com maior resolutividade, tal como está estabelecido nos atributos da APS.

No entanto, nota-se também ser necessário que o profissional atuante na coordenação do cuidado tenha um perfil adequado para a atuação na APS, e mais especificamente na regulação. Este perfil vem sendo lapidado por diversas iniciativas para a formação dos médicos de família por meio da residência em medicina de família e comunidade, onde os serviços da Atenção Primária são o campo de prática para os residentes. Este conjunto entre a academia e o serviço é recomendado também por agregar valor à qualificação profissional ao produzir e fortalecer espaços para a educação permanente e discussões clínicas no ambiente local onde ocorrer as principais atividades da regulação descentralizada.

Recomenda-se a produção de estratégias de melhorias que procurem resolver dificuldades relativas à comunicação entre os profissionais solicitantes e os especialistas no que diz respeito a referência e contrarreferência dos procedimentos realizados. A democratização da informação sobre acesso as vagas e procedimentos, também precisa ocorrer de forma a produzir maior equidade no processo da regulação do acesso.

Ao se tratar a regulação do acesso aos serviços da RAS, a acessibilidade vem a ser um fator preponderante que deve ser avaliado constantemente pelos gestores e profissionais envolvidos, tanto em sua dimensão geográfica, ao pensar o tempo e custo do deslocamento do usuário, quando sócio organizativa, envolvendo recursos humanos e tecnológicos adequados a necessidade de saúde da população.

 

 

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Recebido: 01 de agosto de 2022. Aceito: 26 de setembro de 2022

Correspondência: Alessandro Jatobá. E-mail: alessandro.jatoba@fiocruz.br

Conflito de Interesses: o autor declarara não haver conflito de interesses

 

 

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